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São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2004

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"SATYRICON"

Adaptação do diretor italiano para a obra do satirista latino Petrônio faz arqueologia com a psique humana

Fellini filma o mundo antigo de seus sonhos

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

A primeira vez que Fellini leu o "Satyricon" de Petrônio, poeta da corte de Nero, foi, gulosamente, na adolescência, em empreitada extracurricular povoada por ilustrações eróticas. Anos mais tarde, retoma o livro sem a mesma urgência, mas com o mesmo prazer, decidindo adaptar os fragmentos de Petrônio como um arqueólogo que cola os estilhaços de uma cerâmica. Fellini não pretende tanto filmar o mundo antigo quanto o que se sonha hoje dele.
O diretor, que sempre se alimentou de seus sonhos, chegando a anotar, por mais de 30 anos, um "diário dos sonhos", andava, à época, influenciado pelas teorias junguianas, de cabeça feita por um aluno e discípulo da "psicologia das profundezas" de Carl G. Jung, o doutor Ernst Bernhard.
Em seu "Satyricon", Fellini filma o "mundo antigo" de seus sonhos, partindo do princípio de que esses sonhos são o rastro de uma noite original, primordial, de um "inconsciente coletivo" que ele encena e satiriza.
Fellini faz arqueologia com a psique humana, em busca de seus estratos mais profundos. Seus tipos nunca se confundiram tanto com arquétipos quanto aqui: pueris, imorais, grotescos -encontrar os rostos adequados e constituir a tapeçaria humana do filme, a base do método felliniano, nunca foi tão difícil para o cineasta.
Em uma construção que lembra a Babel de Breughel (erigida com lúgubre beleza pelas mãos do cenógrafo Danilo Donatti), dois efebos passeiam por uma série em compartimentos, cada qual escondendo uma imagem dantesca de lascívia. É como se Fellini passeasse pelo inconsciente reprimido do paganismo romano.
Os compartimentos da Roma pré-cristã de "Satyricon" e seus ritos dionisíacos vão dar de volta nos inferninhos da Roma pós-cristã de "La Dolce Vita": como diria o escritor Italo Calvino, nas histéricas Romas fellinianas reinam a "truculência elementar do Carnaval" e a "natureza sanguínea do instinto espetacular".
Glauber Rocha, para quem Fellini era uma espécie de Dionísio, deus orgiástico dos espetáculos, via nos filmes do diretor italiano uma "fenomenologia da decadência", capaz de produzir jóias e fezes "dialeticamente". Para tal dialética, Fellini chegaria a criar uma palavra, algo como "procadência", que exprimiria duas facetas da decadência, sua inexorabilidade e o renovado potencial criativo que a acompanha. "Satyricon" é um filme assim, inteiramente "procadente".


Satyricon
Fellini Satyricon
    
Produção: Itália/França, 1969
Direção: Federico Fellini
Com: Martin Potter, Hiram Keller
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco




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