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"SATYRICON"
Adaptação do diretor italiano para a obra do satirista latino Petrônio faz arqueologia com a psique humana
Fellini filma o mundo antigo de seus sonhos
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
A primeira vez que Fellini
leu o "Satyricon" de Petrônio, poeta da corte de Nero, foi,
gulosamente, na adolescência, em
empreitada extracurricular povoada por ilustrações eróticas.
Anos mais tarde, retoma o livro
sem a mesma urgência, mas com
o mesmo prazer, decidindo adaptar os fragmentos de Petrônio como um arqueólogo que cola os estilhaços de uma cerâmica. Fellini
não pretende tanto filmar o mundo antigo quanto o que se sonha
hoje dele.
O diretor, que sempre se alimentou de seus sonhos, chegando a anotar, por mais de 30 anos,
um "diário dos sonhos", andava,
à época, influenciado pelas teorias
junguianas, de cabeça feita por
um aluno e discípulo da "psicologia das profundezas" de Carl G.
Jung, o doutor Ernst Bernhard.
Em seu "Satyricon", Fellini filma o "mundo antigo" de seus sonhos, partindo do princípio de
que esses sonhos são o rastro de
uma noite original, primordial, de
um "inconsciente coletivo" que
ele encena e satiriza.
Fellini faz arqueologia com a
psique humana, em busca de seus
estratos mais profundos. Seus tipos nunca se confundiram tanto
com arquétipos quanto aqui: pueris, imorais, grotescos -encontrar os rostos adequados e constituir a tapeçaria humana do filme,
a base do método felliniano, nunca foi tão difícil para o cineasta.
Em uma construção que lembra
a Babel de Breughel (erigida com
lúgubre beleza pelas mãos do cenógrafo Danilo Donatti), dois efebos passeiam por uma série em
compartimentos, cada qual escondendo uma imagem dantesca
de lascívia. É como se Fellini passeasse pelo inconsciente reprimido do paganismo romano.
Os compartimentos da Roma
pré-cristã de "Satyricon" e seus ritos dionisíacos vão dar de volta
nos inferninhos da Roma pós-cristã de "La Dolce Vita": como
diria o escritor Italo Calvino, nas
histéricas Romas fellinianas reinam a "truculência elementar do
Carnaval" e a "natureza sanguínea do instinto espetacular".
Glauber Rocha, para quem Fellini era uma espécie de Dionísio,
deus orgiástico dos espetáculos,
via nos filmes do diretor italiano
uma "fenomenologia da decadência", capaz de produzir jóias e
fezes "dialeticamente". Para tal
dialética, Fellini chegaria a criar
uma palavra, algo como "procadência", que exprimiria duas facetas da decadência, sua inexorabilidade e o renovado potencial
criativo que a acompanha. "Satyricon" é um filme assim, inteiramente "procadente".
Satyricon
Fellini Satyricon
Produção: Itália/França, 1969
Direção: Federico Fellini
Com: Martin Potter, Hiram Keller
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco
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