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RODAPÉ
Faltam intelectuais que resistam à tentação de serem tribunos
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Faz 5.000, talvez 6.000 anos
que alguém inventou pela
primeira vez uma maneira efetiva
de converter sons audíveis em
imagens visíveis. Isso pode ter
acontecido às margens do Eufrates ou do Nilo, no subcontinente
indiano ou na China.
No começo, quem sabe, tratava-se apenas de alguma marca inscrita num osso ou numa pedra, e servia seja como indicação do nome
da pessoa cujo destino se buscava
adivinhar, seja como registro do
número de ovelhas que pertenciam ao chefe local.
Poucas inovações, no entanto,
alteraram tão profundamente os
hábitos do ser humano ou potencializaram tanto suas aptidões. As
invenções, na sua maioria, são
corretamente vistas como dispositivos capazes, por exemplo, de
fortalecer o braço ou tornar mais
rápida a perna : elas intensificam
ou melhoram quantitativamente
algo que o corpo faz.
A escrita, no entanto, tomou a
comunicação, que consistia em
moldar, com as cordas vocais e a
língua, mensagens efêmeras compostas de ondas sonoras que seriam recebidas pelo ouvido, e
transformou-as em algo que,
saindo das mãos ou da ponta dos
dedos, seria captado pelos olhos.
Que as mensagens pudessem
ser gravadas em materiais mais
duradouros tornou-as transmissíveis através de outra escala de
tempo e de espaço.
Graças não só ao poder que ela
conferia, mas provavelmente
também devido a associações antigas com a esfera religiosa, resíduos de seu caráter mágico, mesmo numa era de alfabetização
quase universal (no hemisfério
Norte), preservam-se até hoje.
Apesar de todo o debate a respeito dos meios de comunicação,
das imagens eletro-eletrônicas, do
universo digital, a capacidade de
escrever ainda merece respeito e
veneração. Quase ninguém mais
lê poesia, mas chamar alguém,
sem ironia, de escritor ou poeta
equivale tanto a designar seu ramo de atividade como a lhe atribuir, como milênios atrás, um título honorífico.
É isto apenas que explica um fato paradoxal. Há pessoas que, embora capazes de criar uma imagem surpreendente, de reformular de forma inesperada um lugar-comum ou de expressar com elegância tal ou qual banalidade,
nem assim seriam ouvidas na hora de consertar um motor ou cozinhar um guisado.
Porém, quando, às vésperas de
uma eleição, de uma guerra ou
após uma revolução ou terremoto, elas se manifestam, grandes
platéias habitualmente céticas as
levam totalmente a sério.
Não é porque um sujeito escreveu um soneto amoroso decente
ou um romance policial legível
que suas opiniões a respeito da dívida interna ou da diplomacia internacional são automaticamente
idiotas. Se o século passado sugere algo, contudo, é que a possibilidade de tanto o talento literário
quanto o equívoco político escorrerem de uma mesma pena nada
tem de baixa : pelo contrário.
Não houve, nos últimos cem
anos, um tirano, um sistema totalitário ou regime autoritário, uma
utopia assassina nem uma ideologia sádica que não tenha sido cantada pelos melhores escritores da
época. Quanto maior a quantidade de grandes nomes num abaixo-assinado qualquer, maior a chance de que os efeitos de sua
realização sejam desastrosos.
Por alguma razão não necessariamente misteriosa, o sistema
político menos apreciado nos
meios artísticos tem sido a democracia pura e simples. Para cada
George Orwell, disposto a defender idéias impopulares entre seus
pares, houve centenas de Nerudas
e Pounds celebrando stalinismo e
fascismo. O que mais tem faltado
e ainda falta são os intelectuais
que, reconhecendo que suas opiniões não são a priori nem melhores nem piores do que as de quem
quer que seja, mostrem-se capazes de resistir à tentação de serem
tribunos tanto faz de que causa,
pois todas as causas que lhes acenam com esse papel são suspeitas.
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