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DENTRO DA NOVA ORDEM MUNDIAL
Cineasta avalia impacto das indicações de "Cidade de Deus"
Para Walter Salles, independentes não abalam Hollywood
DA REPORTAGEM LOCAL
Enquanto aguarda o lançamento mundial de "Diários de Motocicleta", seu sexto longa-metragem, o cineasta Walter Salles filma o próximo, "The Dark Water", também uma produção internacional, filmada no Canadá.
De lá, Salles conversou com a
Folha sobre as indicações ao Oscar de "Cidade de Deus", do qual
é co-produtor, e sobre o mercado
do filme independente. Leia a seguir.
(SILVANA ARANTES)
Folha - O sucesso de "Cidade de
Deus" é antecedido por "Central do
Brasil" (1998). Qual é a sua explicação para o fenômeno de popularidade de "Central do Brasil"?
Walter Salles - O que aconteceu
com "Central..." foi inteiramente
inesperado. Durante a filmagem,
[a atriz] Fernanda Montenegro
dizia: "Meu Deus, será que alguém vai querer ver essa história?". Ambos ríamos muito com
isso e seguíamos em frente.
O talento extraordinário de Fernanda, a integridade do [ator] Vinicius [de Oliveira], do [fotógrafo] Walter Carvalho e do resto da
equipe deram vida ao filme. Depois, veio a estréia em Sundance,
o Urso de Ouro [de melhor filme]
e de prata [melhor atriz, para Fernanda Montenegro] em Berlim, e
"Central..." deixou de ser dessa
pequena equipe que o realizou de
forma tão coletiva e começou a
andar por suas próprias pernas.
Não sei se é possível explicar a
capacidade de comunicação que
um filme às vezes adquire. Poucas
coisas são mais difíceis de fazer do
que cinema, tanto de um ponto de
vista emocional quanto físico. No
entanto, penso que se um filme
tem honestidade de propósito, o
espectador percebe.
Folha - É correto dizer que o diálogo que você provou ser capaz de
estabelecer com as platéias mundiais através de "Central do Brasil"
o atirou na engrenagem do mercado do filme independente?
Salles - O lado positivo da existência de um mercado do filme
independente é que as co-produções se tornam possíveis, e é por
essa brecha que se consegue, às
vezes, financiamento para um filme tão brasileiro quanto "Madame Satã" [Karim Aïnouz, 2002].
No caso do filme de Karim e de
"Cidade de Deus", a existência de
fontes de financiamento alternativas foi fundamental, porque quase ninguém queria investir nesses
filmes no Brasil. O lado negativo
só existe quando o cineasta se sujeita ao que esse mercado às vezes
pede -a repetição daquilo que
deu certo na esfera do cinema independente.
Folha - O mercado do filme independente, que hoje é em larga medida operado por braços das majors norte-americanas, é a porta
que salva da exclusão as cinematografias não-hollywoodianas ou é
uma expressão disfarçada da chamada "estratégia da onipresença"
dos grandes estúdios dos EUA?
Salles - As duas coisas, provavelmente. Mas, mesmo aí, não me
parece possível olhar para esse
grupo de novas companhias em
bloco. Algumas são diferentes,
dão autonomia aos cineastas. Outras metem a mão no filme.
No caso recente da venda de
"Diários de Motocicleta" no Festival de Sundance, a oferta mais alta
não veio da Focus [que comprou
o filme por US$ 4 milhões], mas
de uma companhia ligada a Rupert Murdoch. A produtora de
Redford recusou essa proposta,
por razões óbvias. É possível agir
de forma diferenciada dentro do
universo do filme independente.
Folha - O filme independente, por
seu baixo custo de produção e seu
potencial de grande lucro ou de
prejuízo irrisório, tornou-se importante no funcionamento da indústria do cinema?
Salles - Não, o filme independente não tem importância econômica real para os estúdios. Por
outro lado, é ele que faz avançar a
linguagem, como num laboratório.
Folha - O fato de um filme produzido nas condições e com o orçamento de "Cidade de Deus" receber quatro indicações ao Oscar representa um curto-circuito ou é
prova do caráter intercambiável
dos modelos industriais?
Salles - Ambas as coisas, provavelmente. Mas é bom lembrar que
as quatro indicações de "Cidade
de Deus", que são, ao mesmo
tempo, extraordinárias e amplamente merecidas, surpreenderam
quase todo mundo, começando
pelo pessoal dos estúdios. Elas
vieram como uma baforada de ar
fresco, provando que o talento é
mais importante do que o orçamento de um filme.
Antes dessas indicações, Hollywood deixava o filme "estrangeiro" preso em um território restrito. Essa fronteira acaba de ser implodida. Isso é a prova de que cinematografias distantes estão se
comunicando melhor? Certamente. Mas será que isso serve a
Hollywood? Não creio. O mais interessante, no caso de "Cidade de
Deus", é que o reconhecimento
não está ligado a uma boa performance comercial no mercado interno norte-americano. O que
eles reconheceram foi o filme, e
não o seu sucesso comercial.
Não tive nenhuma participação
na campanha que resultou nas
quatro indicações. O mérito é todo do Fernando e de seus colaboradores. E, mesmo se a Miramax
acreditou no filme, a simples força da distribuidora não é suficiente para assegurar qualquer indicação. Veja o que aconteceu com
"Cold Mountain" [da Miramax],
que não conseguiu a indicação
para melhor filme nem melhor diretor, apesar da campanha publicitária que havia por trás do filme.
"Cidade de Deus" foi reconhecido não só pela Academia de Artes
e Ciências Cinematográficas de
Hollywood, como também por
festivais como o de Havana, onde
ganhou vários prêmios. É essa extraordinária latitude que prova o
real valor do filme.
Folha - Pela proporção do mercado dos EUA ocupada por filmes
não-americanos e não-europeus
(entre 1,5% e 3%) e a parcela do
mercado europeu ocupada por filmes não-europeus e não-americanos (entre 1% e 3,6%), pode-se concluir que o cinema brasileiro jamais
se firmará como indústria e que cineastas como você não têm outro
caminho a não ser o das produções
(ou co-produções) internacionais?
Salles - Há vários caminhos possíveis dentro do território do cinema independente. Um exemplo:
não sei bem onde colocar "Diários de Motocicleta", mas talvez
seja o filme que eu dirigi que me é
mais próximo. O projeto me foi
oferecido, mas acabou se tornando uma obsessão, como se eu o tivesse gerado desde a largada.
Agora estou filmando no Canadá. Tive curiosidade de experimentar uma outra maneira de fazer cinema, mas não quero nem
vou ficar em terra estrangeira. O
meu próximo projeto será pequeno, intimista -e brasileiro.
Folha - A projeção internacional
de "Cidade de Deus" e "Diários de
Motocicleta" tem algum reflexo
para os demais diretores brasileiros ou são apenas sucessos isolados e pontuais, como no caso dos
mexicanos Alejandro Iñárritu e Alfonso Cuáron e da nova geração argentina?
Salles - Alejandro Iñárritu me
falou que queria voltar a filmar
em espanhol, depois de "21 Gramas". Carlos Cuarón, irmão de
Alfonso, vai começar em breve
um filme sobre futebol mexicano,
com Gael García Bernal [o Che de
"Diários de Motocicleta"]. Fernando Meirelles vai fazer "Intolerância" depois do seu projeto para a Focus Features [a adaptação
do romance "O Jardineiro Fiel",
de John Le Carré].
O jovem cinema argentino, de
Pablo Trapero, Lucrecia Martel e
Pablo Reyero, entre outros, talvez
seja hoje o mais interessante no
mundo. Há algo acontecendo de
fato no cinema da América Latina, e muita coisa ainda surgirá.
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