São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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DENTRO DA NOVA ORDEM MUNDIAL

Cineasta avalia impacto das indicações de "Cidade de Deus"

Para Walter Salles, independentes não abalam Hollywood

DA REPORTAGEM LOCAL

Enquanto aguarda o lançamento mundial de "Diários de Motocicleta", seu sexto longa-metragem, o cineasta Walter Salles filma o próximo, "The Dark Water", também uma produção internacional, filmada no Canadá.
De lá, Salles conversou com a Folha sobre as indicações ao Oscar de "Cidade de Deus", do qual é co-produtor, e sobre o mercado do filme independente. Leia a seguir. (SILVANA ARANTES)
 

Folha - O sucesso de "Cidade de Deus" é antecedido por "Central do Brasil" (1998). Qual é a sua explicação para o fenômeno de popularidade de "Central do Brasil"?
Walter Salles -
O que aconteceu com "Central..." foi inteiramente inesperado. Durante a filmagem, [a atriz] Fernanda Montenegro dizia: "Meu Deus, será que alguém vai querer ver essa história?". Ambos ríamos muito com isso e seguíamos em frente.
O talento extraordinário de Fernanda, a integridade do [ator] Vinicius [de Oliveira], do [fotógrafo] Walter Carvalho e do resto da equipe deram vida ao filme. Depois, veio a estréia em Sundance, o Urso de Ouro [de melhor filme] e de prata [melhor atriz, para Fernanda Montenegro] em Berlim, e "Central..." deixou de ser dessa pequena equipe que o realizou de forma tão coletiva e começou a andar por suas próprias pernas.
Não sei se é possível explicar a capacidade de comunicação que um filme às vezes adquire. Poucas coisas são mais difíceis de fazer do que cinema, tanto de um ponto de vista emocional quanto físico. No entanto, penso que se um filme tem honestidade de propósito, o espectador percebe.

Folha - É correto dizer que o diálogo que você provou ser capaz de estabelecer com as platéias mundiais através de "Central do Brasil" o atirou na engrenagem do mercado do filme independente?
Salles -
O lado positivo da existência de um mercado do filme independente é que as co-produções se tornam possíveis, e é por essa brecha que se consegue, às vezes, financiamento para um filme tão brasileiro quanto "Madame Satã" [Karim Aïnouz, 2002].
No caso do filme de Karim e de "Cidade de Deus", a existência de fontes de financiamento alternativas foi fundamental, porque quase ninguém queria investir nesses filmes no Brasil. O lado negativo só existe quando o cineasta se sujeita ao que esse mercado às vezes pede -a repetição daquilo que deu certo na esfera do cinema independente.

Folha - O mercado do filme independente, que hoje é em larga medida operado por braços das majors norte-americanas, é a porta que salva da exclusão as cinematografias não-hollywoodianas ou é uma expressão disfarçada da chamada "estratégia da onipresença" dos grandes estúdios dos EUA?
Salles -
As duas coisas, provavelmente. Mas, mesmo aí, não me parece possível olhar para esse grupo de novas companhias em bloco. Algumas são diferentes, dão autonomia aos cineastas. Outras metem a mão no filme.
No caso recente da venda de "Diários de Motocicleta" no Festival de Sundance, a oferta mais alta não veio da Focus [que comprou o filme por US$ 4 milhões], mas de uma companhia ligada a Rupert Murdoch. A produtora de Redford recusou essa proposta, por razões óbvias. É possível agir de forma diferenciada dentro do universo do filme independente.

Folha - O filme independente, por seu baixo custo de produção e seu potencial de grande lucro ou de prejuízo irrisório, tornou-se importante no funcionamento da indústria do cinema?
Salles -
Não, o filme independente não tem importância econômica real para os estúdios. Por outro lado, é ele que faz avançar a linguagem, como num laboratório.

Folha - O fato de um filme produzido nas condições e com o orçamento de "Cidade de Deus" receber quatro indicações ao Oscar representa um curto-circuito ou é prova do caráter intercambiável dos modelos industriais?
Salles -
Ambas as coisas, provavelmente. Mas é bom lembrar que as quatro indicações de "Cidade de Deus", que são, ao mesmo tempo, extraordinárias e amplamente merecidas, surpreenderam quase todo mundo, começando pelo pessoal dos estúdios. Elas vieram como uma baforada de ar fresco, provando que o talento é mais importante do que o orçamento de um filme.
Antes dessas indicações, Hollywood deixava o filme "estrangeiro" preso em um território restrito. Essa fronteira acaba de ser implodida. Isso é a prova de que cinematografias distantes estão se comunicando melhor? Certamente. Mas será que isso serve a Hollywood? Não creio. O mais interessante, no caso de "Cidade de Deus", é que o reconhecimento não está ligado a uma boa performance comercial no mercado interno norte-americano. O que eles reconheceram foi o filme, e não o seu sucesso comercial.
Não tive nenhuma participação na campanha que resultou nas quatro indicações. O mérito é todo do Fernando e de seus colaboradores. E, mesmo se a Miramax acreditou no filme, a simples força da distribuidora não é suficiente para assegurar qualquer indicação. Veja o que aconteceu com "Cold Mountain" [da Miramax], que não conseguiu a indicação para melhor filme nem melhor diretor, apesar da campanha publicitária que havia por trás do filme.
"Cidade de Deus" foi reconhecido não só pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, como também por festivais como o de Havana, onde ganhou vários prêmios. É essa extraordinária latitude que prova o real valor do filme.

Folha - Pela proporção do mercado dos EUA ocupada por filmes não-americanos e não-europeus (entre 1,5% e 3%) e a parcela do mercado europeu ocupada por filmes não-europeus e não-americanos (entre 1% e 3,6%), pode-se concluir que o cinema brasileiro jamais se firmará como indústria e que cineastas como você não têm outro caminho a não ser o das produções (ou co-produções) internacionais?
Salles -
Há vários caminhos possíveis dentro do território do cinema independente. Um exemplo: não sei bem onde colocar "Diários de Motocicleta", mas talvez seja o filme que eu dirigi que me é mais próximo. O projeto me foi oferecido, mas acabou se tornando uma obsessão, como se eu o tivesse gerado desde a largada.
Agora estou filmando no Canadá. Tive curiosidade de experimentar uma outra maneira de fazer cinema, mas não quero nem vou ficar em terra estrangeira. O meu próximo projeto será pequeno, intimista -e brasileiro.

Folha - A projeção internacional de "Cidade de Deus" e "Diários de Motocicleta" tem algum reflexo para os demais diretores brasileiros ou são apenas sucessos isolados e pontuais, como no caso dos mexicanos Alejandro Iñárritu e Alfonso Cuáron e da nova geração argentina?
Salles -
Alejandro Iñárritu me falou que queria voltar a filmar em espanhol, depois de "21 Gramas". Carlos Cuarón, irmão de Alfonso, vai começar em breve um filme sobre futebol mexicano, com Gael García Bernal [o Che de "Diários de Motocicleta"]. Fernando Meirelles vai fazer "Intolerância" depois do seu projeto para a Focus Features [a adaptação do romance "O Jardineiro Fiel", de John Le Carré].
O jovem cinema argentino, de Pablo Trapero, Lucrecia Martel e Pablo Reyero, entre outros, talvez seja hoje o mais interessante no mundo. Há algo acontecendo de fato no cinema da América Latina, e muita coisa ainda surgirá.

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