São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Dentro da nova ordem mundial

João Wainer - 06.ago.2002/Folha Imagem
Sessão do filme "Cidade de Deus" em São Paulo, em 2002, na qual estava presente Luiz Inácio Lula da Silva, então candidato à Presidência


Com quatro indicações ao Oscar, "Cidade de Deus" rompe a linha que deixa à margem o filme latino e independente

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

As quatro indicações ao Oscar recebidas nesta semana pelo filme brasileiro "Cidade de Deus" (melhor fotografia, montagem, roteiro adaptado e direção, de Fernando Meirelles) desvirginam para o cinema brasileiro um território próprio de Hollywood -o da excelência técnica.
Os Estados Unidos produzem entre 700 e 800 filmes por ano. O Brasil sustenta, há três anos, a média de realização anual de 33 filmes, na tendência de recuperação de uma crise que atingiu seu auge em 1992, quando o país concluiu e lançou apenas dois longas.
Antes da avalanche de indicações de "Cidade de Deus", a participação brasileira no Oscar se concentrava numa categoria lateral, a de "melhor filme em língua estrangeira", que disputou quatro vezes -"O Pagador de Promessas" (1963), "O Quatrilho" (1996), "O que É Isso, Companheiro?" (1997), "Central do Brasil" (1998). As outras duas vezes em que o país marcou presença na competição (sem jamais vencer) foram com Fernanda Montenegro, indicada a melhor atriz por "Central do Brasil", e com o curta-metragem "História de Futebol" (2000).
O cineasta brasileiro de origem argentina Hector Babenco disputou a estatueta de melhor diretor com um filme co-produzido pelos EUA, "O Beijo da Mulher Aranha" (1985), que foi nomeado em outras três categorias.
"Antes das indicações de "Cidade de Deus", Hollywood deixava o filme "estrangeiro" preso em um território restrito. Essa fronteira acaba de ser implodida", afirma o cineasta Walter Salles, que é co-produtor do longa de Meirelles.
O diretor de "Cidade de Deus" diz que a "visibilidade internacional" do nome de Salles foi fundamental para viabilizar o projeto. "Cidade de Deus", orçado em US$ 3 milhões, conquistou um parceiro francês (StudioCanal/ Wild Bunch) e um distribuidor norte-americano (Miramax), que no entanto só aceitou se associar ao projeto com o filme concluído.
"No Brasil, quase ninguém queria investir em "Cidade de Deus'", afirma Salles, cujo nome se tornou mundialmente conhecido no universo do cinema com o sucesso de "Central do Brasil" (1998). Uma das marcas ainda hoje sustentadas pelo longa é a de filme latino-americano mais visto na Europa de 1996 a 2002. O restante do ranking é dominado por produções argentinas e mexicanas, cujo volume de público é garantido pela platéia da Espanha, país de língua comum.
O mais recente trabalho de Salles, o ainda inédito "Diários de Motocicleta", baseado em parte da trajetória do líder revolucionário Ernesto Che Guevara (1928-1967), tem chances de repetir o feito de "Cidade de Deus" no ano que vem, figurando nas categorias principais do Oscar.
As apostas pela indicação de "Diários de Motocicleta" começaram a ser feitas em conseqüência de seu sucesso no último Festival de Sundance (de 15 a 25/1), onde foi exibido fora de competição, por ter sua produção assinada pelo promotor do festival, o ator americano Robert Redford.
Após a sessão, "Diários de Motocicleta" foi disputado por diversas distribuidoras e acabou sendo comprado pela Focus Features, o mesmo selo que produziu "Encontros e Desencontros", de Sofia Coppola (quatro indicações ao Oscar/2004), "21 Gramas", de Alejandro Iñárritu (duas indicações), e que contratou Fernando Meirelles para dirigir o longa "O Jardineiro Fiel". Meirelles está atualmente em Londres, preparando o filme, que será seu primeiro título internacional.
A Focus é um nome do mercado independente de filmes, no qual, em princípio, incluem-se todos os títulos brasileiros. "A noção de produtor independente varia de acordo com a época e o contexto de mercado. Nos Estados Unidos, a independência se mede em relação ao poderio de distribuição das majors. Na Europa, ela é medida pela distância em relação às emissoras de TV, que adquiriram, a partir dos anos 80, uma grande importância no mercado do cinema", diz André Lange, coordenador do Observatório Europeu do Audiovisual, órgão que analisa o comportamento do mercado de filmes no mundo inteiro.
Meirelles conta que ouviu de um distribuidor estrangeiro uma definição mais prosaica para dividir o mercado de filmes: "Filmes falados em inglês podem custar quanto quiserem. Filmes falados em outra língua, no máximo, US$ 6 milhões".
Diante desse "parâmetro", o diretor brasileiro chegou a uma conclusão sobre a seqüência de sua carreira no Brasil: "Cada vez que eu tiver uma idéia cara, vou ter de fazer uma parte do filme em inglês. Ou então pensar em outro projeto".
Porém, as quatro indicações de "Cidade de Deus" ao Oscar relativizam muitas regras informais do mercado cinematográfico, inclusive a que condena o cinema latino-americano a uma faixa de exclusão. Segundo dados do Observatório Europeu do Audiovisual, a parcela do mercado interno dos Estados Unidos ocupada por filmes que não sejam nem norte-americanos nem europeus varia entre 1,5% e 3,6%.
"As indicações de "Cidade de Deus" ao Oscar são uma boa sinalização, mostram que o mercado [norte-americano] está interessado nesses filmes", diz Meirelles.
O interesse cinematográfico dos Estados Unidos além-fronteiras tem um aspecto econômico bastante claro. "Os sindicatos [de trabalhadores na indústria cinematográfica] dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Alemanha são muito rígidos, e sai muito caro filmar nesses países", diz Meirelles.
Para reduzir custos ou aumentar lucros, o caminho das produções menores tem sido o Canadá, a Polônia e Praga (República Tcheca). "Nos dois últimos anos, começaram a descobrir a Argentina e, nesse último ano, o Brasil", diz Meirelles, apontando uma tendência válida "tanto no cinema quanto na publicidade".
A produtora de Meirelles em São Paulo, O2 Filmes, é exemplo da corrente. "Neste mês, há três equipes internacionais, de italianos, alemães e ingleses, filmando aqui. Quer dizer, aí", afirma o diretor, na conversa por telefone, de Londres. Pelo menos por enquanto, Meirelles parece manter o pé na Inglaterra e a cabeça no Brasil.


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