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BERNARDO CARVALHO
Ela come, ele vomita
"Fat Pig" (porca gorda), peça de Neil LaBute em cartaz em Nova York, começa com o diálogo entre uma mulher obesa e
um executivo boa-pinta, que se
encontram por acaso num restaurante na hora do almoço. O homem vem caminhando com uma
bandeja nas mãos, à procura de
uma mesa: "Enorme", ele pensa
alto, sobre o lugar, enquanto olha
em volta. A mulher, que ele não
tinha visto, sentada diante de
uma mesa cheia de comida, retruca: "Desculpe?". E depois se explica: "Pensei que você estivesse
falando de mim". É pela ambigüidade e pela auto-ironia que inicia
o jogo de sedução entre os dois.
Mais adiante, já sentados à
mesma mesa, ele pergunta o nome dela. "Helena", ela responde.
"Como "de Tróia'?", ele se sente
constrangido com o próprio comentário infame e pede desculpas. Mas ela não deixa por menos: "Isso mesmo, todos aqueles
milhares de navios [da guerra de
Tróia]. Eram só para poder me
carregar de volta...". No segundo
encontro, um jantar romântico,
de repente Tom aperta a mão de
Helena, enquanto fala. "Você está
segurando a minha mão", ela o
lembra lá pelas tantas. E completa: "É que eu gostaria de comer
mais um pedaço da minha galinha... mas dá para esperar".
Dizer que "Fat Pig" não é nem
de longe a melhor peça de LaBute
é um eufemismo. A peça está a
quilômetros da ambigüidade
cruel de "Na Companhia de Homens" e "The Shape of Things".
Ainda assim, a maneira como o
autor se serve dos equívocos da
linguagem é surpreendente. Tudo
surge desses mal-entendidos. É
graças a essas zonas nebulosas do
sentido que Helena, a "porca gorda" do título, consegue conquistar Tom, fazendo graça de si mesma antes que os outros possam
tomar a iniciativa.
É uma tática bem-humorada, o
que não garante que seja sempre
bem-sucedida. Helena seduz Tom
com sua inteligência e seu humor,
mas Tom é um homem fraco, incapaz de bancar os próprios desejos até as últimas conseqüências.
A opinião dos outros é um obstáculo intransponível para a sua covardia. Assumir publicamente a
relação com uma "porca gorda" é
para ele um peso insustentável,
ainda que seja esse o seu desejo.
No prefácio, o próprio LaBute
diz que a certa altura decidiu fazer um regime e chegou a perder
27 quilos em oito meses: "De repente, o espelho se tornou meu
amigo". No lugar da comida, o
dramaturgo ficou obcecado pelo
próprio corpo, viciado num ciclo
de baixas calorias e ginástica.
"Também notei que estava escrevendo cada vez menos."
Seis meses depois, como costuma acontecer com muita gente,
LaBute recuperou mais da metade dos quilos perdidos. O interessante, entretanto, é a relação de
oposição que ele estabelece, no
prefácio, entre narcisismo e capacidade criativa.
LaBute sempre foi um moralista. Sendo que o interesse de suas
peças psicológicas está em grande
parte na ambigüidade perversa
dessa moral, capaz de revelar a
complexidade muitas vezes paradoxal e desconcertante dos sentimentos e desejos dos personagens
-e, por conseqüência, dos espectadores. Uns dizem que "Na
Companhia de Homens" é uma
peça misógina. Outros, que é feminista. Em "Fat Pig", o discurso
é menos ambivalente -e, portanto, mais fraco.
A ambigüidade dos sentidos,
marca registrada do dramaturgo,
que nesta peça foi reduzida a alguns diálogos, é o contrário do
trocadilho, do texto esperto, publicitário. A graça e a inteligência
dos diálogos não denotam uma
crença narcisista e adolescente no
que eles têm a dizer. Muito pelo
contrário, são diálogos que revelam as brechas em que o discurso
diz o seu oposto: a personagem ri
de si como um mecanismo de autodefesa.
Um paradoxo semelhante, mas
com efeitos bem diferentes, está
na base do espetáculo "Regurgitofagia", de Michel Melamed, em
cartaz em São Paulo. LaBute faz
teatro psicológico. Melamed está
mais próximo da performance e
da stand-up comedy. Sozinho no
palco, como um mágico ou prestidigitador ligado a fios de alta tensão que, em princípio, lhe dão
descargas elétricas conforme a
reação do público registrada por
microfones espalhados pela platéia, o ator-autor vomita um texto verborrágico, pontuado por
trocadilhos, piadas e poemas de
sua autoria.
O mais curioso é que todo esse
mecanismo, ao mesmo tempo em
que parece ser crítico, reforça a relação narcisista do ator com o público. Há uma dinâmica contraditória entre o mecanismo que
pune o ator-autor em cena, um
mecanismo que parece fazer a crítica dessa relação de exposição do
mundo como espetáculo, e o texto
que no fundo não ri de si mesmo,
mas acredita na afirmação da
sua inteligência, no que tem a dizer, está fascinado pelas próprias
sacações e se serve da encenação
como de um efeito publicitário.
Nesse caso, os choques que o
ator sofre a cada coisa que diz
acabam tendo um efeito cabotino. Eles não têm por objetivo expor a fragilidade e as ambigüidades do discurso. Ao contrário, expõem o autor como um ser extraordinário. Melamed não ri de
si nem do que diz mas também
não deixa de se servir de um mecanismo de autodefesa. Assim como a auto-ironia da personagem
de "Fat Pig", os choques que o
ator-autor de "Regurgitofagia"
leva no palco são uma forma de se
adiantar à reação do público,
transformando-a em efeito cênico, trazendo-a para a cena, pondo-a em questão antes de ela poder julgar o que está sendo dito.
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