São Paulo, terça-feira, 01 de fevereiro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Ela come, ele vomita

"Fat Pig" (porca gorda), peça de Neil LaBute em cartaz em Nova York, começa com o diálogo entre uma mulher obesa e um executivo boa-pinta, que se encontram por acaso num restaurante na hora do almoço. O homem vem caminhando com uma bandeja nas mãos, à procura de uma mesa: "Enorme", ele pensa alto, sobre o lugar, enquanto olha em volta. A mulher, que ele não tinha visto, sentada diante de uma mesa cheia de comida, retruca: "Desculpe?". E depois se explica: "Pensei que você estivesse falando de mim". É pela ambigüidade e pela auto-ironia que inicia o jogo de sedução entre os dois.
Mais adiante, já sentados à mesma mesa, ele pergunta o nome dela. "Helena", ela responde. "Como "de Tróia'?", ele se sente constrangido com o próprio comentário infame e pede desculpas. Mas ela não deixa por menos: "Isso mesmo, todos aqueles milhares de navios [da guerra de Tróia]. Eram só para poder me carregar de volta...". No segundo encontro, um jantar romântico, de repente Tom aperta a mão de Helena, enquanto fala. "Você está segurando a minha mão", ela o lembra lá pelas tantas. E completa: "É que eu gostaria de comer mais um pedaço da minha galinha... mas dá para esperar".
Dizer que "Fat Pig" não é nem de longe a melhor peça de LaBute é um eufemismo. A peça está a quilômetros da ambigüidade cruel de "Na Companhia de Homens" e "The Shape of Things". Ainda assim, a maneira como o autor se serve dos equívocos da linguagem é surpreendente. Tudo surge desses mal-entendidos. É graças a essas zonas nebulosas do sentido que Helena, a "porca gorda" do título, consegue conquistar Tom, fazendo graça de si mesma antes que os outros possam tomar a iniciativa.
É uma tática bem-humorada, o que não garante que seja sempre bem-sucedida. Helena seduz Tom com sua inteligência e seu humor, mas Tom é um homem fraco, incapaz de bancar os próprios desejos até as últimas conseqüências. A opinião dos outros é um obstáculo intransponível para a sua covardia. Assumir publicamente a relação com uma "porca gorda" é para ele um peso insustentável, ainda que seja esse o seu desejo.
No prefácio, o próprio LaBute diz que a certa altura decidiu fazer um regime e chegou a perder 27 quilos em oito meses: "De repente, o espelho se tornou meu amigo". No lugar da comida, o dramaturgo ficou obcecado pelo próprio corpo, viciado num ciclo de baixas calorias e ginástica. "Também notei que estava escrevendo cada vez menos."
Seis meses depois, como costuma acontecer com muita gente, LaBute recuperou mais da metade dos quilos perdidos. O interessante, entretanto, é a relação de oposição que ele estabelece, no prefácio, entre narcisismo e capacidade criativa.
LaBute sempre foi um moralista. Sendo que o interesse de suas peças psicológicas está em grande parte na ambigüidade perversa dessa moral, capaz de revelar a complexidade muitas vezes paradoxal e desconcertante dos sentimentos e desejos dos personagens -e, por conseqüência, dos espectadores. Uns dizem que "Na Companhia de Homens" é uma peça misógina. Outros, que é feminista. Em "Fat Pig", o discurso é menos ambivalente -e, portanto, mais fraco.
A ambigüidade dos sentidos, marca registrada do dramaturgo, que nesta peça foi reduzida a alguns diálogos, é o contrário do trocadilho, do texto esperto, publicitário. A graça e a inteligência dos diálogos não denotam uma crença narcisista e adolescente no que eles têm a dizer. Muito pelo contrário, são diálogos que revelam as brechas em que o discurso diz o seu oposto: a personagem ri de si como um mecanismo de autodefesa.
Um paradoxo semelhante, mas com efeitos bem diferentes, está na base do espetáculo "Regurgitofagia", de Michel Melamed, em cartaz em São Paulo. LaBute faz teatro psicológico. Melamed está mais próximo da performance e da stand-up comedy. Sozinho no palco, como um mágico ou prestidigitador ligado a fios de alta tensão que, em princípio, lhe dão descargas elétricas conforme a reação do público registrada por microfones espalhados pela platéia, o ator-autor vomita um texto verborrágico, pontuado por trocadilhos, piadas e poemas de sua autoria.
O mais curioso é que todo esse mecanismo, ao mesmo tempo em que parece ser crítico, reforça a relação narcisista do ator com o público. Há uma dinâmica contraditória entre o mecanismo que pune o ator-autor em cena, um mecanismo que parece fazer a crítica dessa relação de exposição do mundo como espetáculo, e o texto que no fundo não ri de si mesmo, mas acredita na afirmação da sua inteligência, no que tem a dizer, está fascinado pelas próprias sacações e se serve da encenação como de um efeito publicitário.
Nesse caso, os choques que o ator sofre a cada coisa que diz acabam tendo um efeito cabotino. Eles não têm por objetivo expor a fragilidade e as ambigüidades do discurso. Ao contrário, expõem o autor como um ser extraordinário. Melamed não ri de si nem do que diz mas também não deixa de se servir de um mecanismo de autodefesa. Assim como a auto-ironia da personagem de "Fat Pig", os choques que o ator-autor de "Regurgitofagia" leva no palco são uma forma de se adiantar à reação do público, transformando-a em efeito cênico, trazendo-a para a cena, pondo-a em questão antes de ela poder julgar o que está sendo dito.

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