São Paulo, quinta-feira, 01 de março de 2001

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LITERATURA/CRÍTICA

Gutierrez mostra Cuba para estômagos fortes

CYNARA MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se fosse um agente norte-americano infiltrado, é possível que o cubano Pedro Juan Gutierrez não causasse tantos estragos na ilha de Fidel Castro quanto o faz sendo escritor. Mesmo os fãs mais ardorosos de Cuba sairão assombrados da leitura de "O Rei de Havana", seu segundo livro lançado no Brasil.
O primeiro foi "Trilogia Suja de Havana"; ano passado, publicaria, na Espanha (não publica em Cuba), "Animal Tropical". Nos três, a mesma obsessão: retratar a gente miserável de Havana, motivação da revolução comandada por Castro, hoje obrigada a fazer de tudo para sobreviver, sob o embargo imposto pelos EUA.
Em nenhum momento menciona a política. No entanto sua crítica é devastadora. O significado de "excluído" fica claro na ilha onde este termo não deveria existir. Às margens do circuito turístico e dos dólares, se move uma população suja e famélica que perdeu o limite entre homem e animal.
Causa até curiosidade como o regime consegue controle tal ao ponto de fazer os dólares circularem em apenas uma parte do país, deixando a outra "comunista" e descapitalizada; a população acaba empurrada para a criminalidade, única maneira de burlar o "apartheid" do dólar na ilha.
O protagonista Reynaldo, o "Rey" de Havana, é um adolescente que perde de forma trágica a família -uma mãe louca que espancava as crianças, uma avó muda, o apartamento "mais porco do edifício inteiro", e um irmão, essa a grande perda.
Depois de fugir do reformatório para onde é enviado, Rey vaga por Havana em direção a seu destino. As poucas vezes em que tem sorte são ofuscadas pelas outras tantas em que, maltrapilho e morto de fome, pede esmola, rouba ou só fica de estômago vazio, mesmo.
Encontra o amor na figura de Magdalena, mulata, esquálida e fétida como ele próprio. Gutierrez não economiza detalhes nas cenas de alto teor erótico em que as descrições não raro repugnantes dos corpos de um e de outro, já experimentadas na "Trilogia" e que lhe fizeram ganhar o título de "Bukowski tropical", são quase um exagero. É preciso ter o estômago forte.
Despudorado, descarado, o autor experimenta de tudo: Rey se envolve com um travesti, com uma velha, com uma deficiente mental. As aventuras do menino de rua "habanero" não deixam o leitor recuperar o fôlego, sempre com a esperança de que as coisas vão melhorar. Não vão.
O final é terrível, triste, desesperançado, absurdo. Quem leu a "Trilogia" vai achar que Gutierrez já se repete um pouco neste romance, ainda assim fascinante por mostrar mais da Cuba que não aparece nos postais. Por isso talvez não faça tanta diferença para ele publicar por lá ou não: essa realidade o cubano já conhece.
Para os que lêem fora da ilha, porém, é contrapropaganda pura. É incrível como ainda permitem que um agente tão perigoso continue a viver por lá.



O Rei de Havana
El Rey de la Habana
   
Autor: Pedro Juan Gutierrez
Tradutor: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (228 págs.)




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