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CONTARDO CALLIGARIS
Darwin virando-se na tumba
Na coluna da semana
passada, comentei que as
recentes revelações sobre o genoma humano confirmam a hipótese da evolução das espécies. Darwin tinha razão.
Esse triunfo da teoria da evolução é um bom momento para
lembrar que, desde seus começos,
o darwinismo é perseguido por
uma ameaçadora caricatura de si
mesmo.
Fundamentalmente, Darwin
observou que os animais com traços biológicos que facilitam a sobrevivência e a reprodução transmitem seus genes e mantêm sua
espécie. Os outros acabam sumindo. A partir disso, ele tentou explicar a evolução das formas de
vida em nosso planeta. Não me
parece que essa visão suponha a
idéia de um plano de Deus ou da
natureza. Apenas há o esforço dos
seres vivos que querem sobreviver. A evolução e a seleção acontecem, o que não significa que sejam um bem. Ou seja, por estarmos aqui, a teoria diz que somos
"superiores" a outras espécies extintas, mas essa superioridade
não tem sentido moral, ela indica
só uma eficácia biológica maior.
Ora, logo depois da publicação
de sua obra prima, "A Origem das
Espécies" (1859), Darwin se queixou de uma resenha segundo a
qual seu livro demonstrava "que
a força vale como direito, que portanto Napoleão estava certo e
também que qualquer comerciante desonesto tem sempre razão". A resenha fundou uma longa dinastia que acompanha o
darwinismo como uma maldição.
Nessa dinastia, as descobertas de
Darwin justificam qualquer status quo. É simples: a evolução é
apresentada como uma intenção
da natureza. Portanto as espécies
e os indivíduos que sobrevivem
são justificados na ordem do
mundo: o sucesso está sempre
moralmente certo.
O capitalismo selvagem encontrou no pseudodarwinismo sua
justificação moral explícita: a
competição e a exploração seriam
apenas formas "normais" da seleção natural.
Nas últimas décadas, a coisa
piorou. Floresceu a dita sociobiologia ou psicologia evolucionista:
uma série de biólogos, sociólogos
e psicólogos aplicou a teoria da
evolução ao comportamento social humano. Eles consideram
que as disposições culturais, as escolhas morais e políticas, as condutas amorosas etc. devem ser
avaliadas em função de seus efeitos na seleção natural. Sendo que,
nessa ótica, sobreviver à seleção é
o bem supremo.
Edmund Wilson escreveu a bíblia do novo campo: "Sociobiology" (1975). Esse livro (respeitadíssimo) já é contaminado pelo
espírito da resenha da qual Darwin se queixava. Wilson, por
exemplo, considera com perplexidade a idéia de que a sociedade
ajude os mais miseráveis. Numa
perspectiva pseudodarwinista, os
mais desfavorecidos perderam a
corrida da seleção natural. Mantê-los em vida significa se expor
ao risco de que seus genes se misturem com os nossos -péssimo
para nós, os favorecidos. Essa observação, além de moralmente repugnante, é simplória. Pois é provável que a força da espécie humana e nossa capacidade de sobreviver dependam também dos
afetos que nos distinguem dos outros animais. Contrariamente aos
dinossauros, a gente enterra os
mortos, se atrasa para ajudar os
que não conseguem andar, alimenta os incapacitados e as
crianças abandonadas. Talvez seja por isso mesmo que os homens
ainda estejam nessa terra.
Desde o livro de Wilson, o pseudo-darwinismo tornou-se uma
disciplina acadêmica na moda.
Sua receita é fixa: se um comportamento existe, é porque foi aprovado pela seleção natural, que é o
grande projeto da natureza. Com
isso, o comportamento é legitimado com a aparente bênção da
ciência.
A disciplina cresce a cada dia.
Leio assiduamente, mas ainda
não encontrei uma obra que não
fosse fútil. Houve o sucesso do livro de Robert Wright, "The Moral
Animal" (1994), que queria formular a moral da seleção natural.
Aprendi, no caso, que o arrivismo é natural e justo porque ele é
necessário ao sucesso em nosso
mundo e portanto está de acordo
com as necessidades da seleção
natural.
No ano passado, fizeram barulho dois acadêmicos, Thornhill e
Palmer, com "A Natural History
of Rape" (uma história natural
do estupro), em que quiseram
mostrar que, para o homem, estuprar é uma conduta natural e
bem adaptada. A tese era deduzida das seguintes premissas: a evolução (o famoso plano da natureza) favoreceria a promiscuidade
dos homens (que devem espalhar
seus genes) e a modéstia das mulheres (que devem se guardar para os homens geneticamente mais
brilhantes e reproduzir só com
eles).
Ou seja, para o bem da espécie,
o homem deve cuidar da quantidade e a mulher da qualidade
(boa maneira machista de autorizar o adultério masculino e
manter a fidelidade feminina). Os
autores concluem então que, com
essa contradição "natural", é inevitável que, de vez em quando, as
mulheres apanhem. Bom, falem
isso para as mulheres que foram
estupradas na guerra da Bósnia.
Uma coisa é certa: à vista do sucesso do pseudodarwinismo, é
possível afirmar que vender bobagens como verdades científicas
deve ser moralmente justo, posto
que parece ser útil e frutífero na
seleção natural (e acadêmica) dos
autores.
ccalligari@uol.com.br
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