São Paulo, quinta-feira, 01 de março de 2001

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LITERATURA

Ricardo Dicke, autor mato-grossense descoberto pelo escritor em 68, num concurso literário, hoje não tem editora

Aposta de Guimarães Rosa lança romances

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1968, o escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke ganhou o Prêmio Walmap de literatura com o romance "Deus de Caim" (editora Edinova). No júri, estavam Jorge Amado, Antônio Olinto e Guimarães Rosa.
Considerado como a grande revelação de uma nova literatura brasileira, Dicke, 64, era apresentado no meio como o "autor descoberto por Guimarães Rosa".
Novos romances vieram, acompanhados por prêmios literários. Em 1978, Dicke ganhou o Prêmio Remington de Prosa com "Caieira" (editora Francisco Alves). Em 1981, faturou o Prêmio Ficção de Brasília, da Fundação Cultural do Distrito Federal, com "Madona dos Páramos" (editora Antares).
No programa "Abertura", da extinta TV Tupi, o cineasta Glauber Rocha, com um exemplar de "Caieira" em mãos, bradou para as câmeras: "Vocês precisam ler este livro".
Dicke ainda publicou, em 1989, "Último Horizonte" (editora Marco Zero) e, em 1995, "Cerimônia do Esquecimento" (Editora da Universidade Federal de Mato Grosso), com o qual papou o Prêmio Literário Orígines Lessa.

Fora de catálogo
Mas a glória de tantas honrarias não arquitetou a notoriedade do escritor, que voltou a morar em Cuiabá.
A maioria de seus livros recebe a balda "fora de catálogo". Para publicar os novos, ele recorre a uma lei de incentivo à cultura e, como um novato, corre atrás de patrocínio.
"Em Cuiabá, ninguém vira grande escritor. Só morando em São Paulo ou no Rio", disse em entrevista pelo telefone.
Filho de pai alemão, que fugiu da Segunda Guerra para o Paraguai e, depois, aportou na pequena Vila Raizama, na Chapada dos Guimarães (Mato Grosso), Dicke começou a ler fuxicando a biblioteca da família.
Mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar Ciências Sociais. Lá, escreveu uma tese de mestrado sobre o mentor Guimarães Rosa, "Conjunctio Oppositorum no Grande Sertão", que foi publicada, e voltou para Cuiabá.
Aproveitando-se da Lei Hermes de Abreu, lei de incentivo fiscal de Mato Grosso, Dicke lança por conta própria dois romances inéditos, "O Salário dos Poetas", a história de um ex-ditador de um país sul-americano exilado no Brasil, e "Rio Abaixo dos Vaqueiros".
Tem ainda quatro livros na gaveta. Informa que uma grande editora de São Paulo quer reeditar seus livros. Enquanto aguarda os contratos, vai editando por lá mesmo os inéditos.
Os novos romances do autor não estão em livrarias. Para adquiri-los gratuitamente, basta ligar para Lorenzo Falcão (0/xx/ 65/663-1313).

Folha - Por que é tão difícil o mercado se abrir para os seus livros?
Ricardo Guilherme Dicke -
Porque eu não consigo estabelecer uma via de comunicação fácil com as editoras. Elas ficam longe demais. Tudo tem de ser feito pelo telefone, cartas, não dá para mostrar a obra. Eu estou tão longe... Tenho contos, poesias, novelas inéditas aqui.

Folha - É coincidência o fato de o senhor ter sido descoberto por Guimarães Rosa e, depois, fazer uma tese sobre "Grande Sertão: Veredas"?
Dicke -
Uma coisa levou a outra. Eu descobri que tinha grandes segredos de conjunção de coisas opostas em Guimarães. Não tem uma linha em que ele não fala da união dos opostos. Parece que ele estava enlouquecido pela idéia da oposição, da tese e antítese.

Folha - O senhor chegou a conhecê-lo pessoalmente?
Dicke -
Não. Mas uma vez eu liguei para ele. Eu estava bêbado. Tinha bebido num bar de Ipanema. Ficamos duas horas no telefone. Eu disse que era um simples capiau. E ele disse: "Eu também sou capiau, caipira mesmo". Ele queria saber tanta coisa de Mato Grosso. Já tinha vindo uma vez para cá. Dizia que queria voltar.

Folha - Por que escrever sobre um ex-ditador sul-americano?
Dicke -
Quase todos os escritores sul-americanos, como Vargas Llosa e García Márquez, escreveram sobre ditadores. Eles nos fascinam. O meu personagem é ilustrado. Será que pode?

Folha - O senhor começou a escrever influenciado por quem?
Dicke -
Pela minha mãe, que era contadora de histórias, inventava coisas. Nós morávamos num rancho, numa casa de sapê. Nos mudamos para Cuiabá quando eu tinha 6 anos.
Hoje em dia, ela não conta mais histórias. Saí de Cuiabá porque só havia uma faculdade, a de direito, e uma biblioteca, em que descobri Goethe. Li Goethe várias vezes. Queria ficar com o livro, roubar para mim, mas não fiquei. Que burro eu sou.

Folha - A religião é sempre presente em sua obra?
Dicke -
Estudei cinco anos em colégio de padre. Depois de ler os existencialistas, como Sartre e Camus, virei ateu. Guimarães Rosa é que acabou com todo o meu ateísmo. Fiquei confuso. Conheci hippies, budistas. Hoje em dia faço meditação e rezo. Eu bebia e fumava muito.
A espiritualização me salvou. Bebendo e fumando não dá certo. Minha vida foi cheia de contratempos. Por meu pai ser alemão, fomos muito perseguidos no Brasil durante a guerra.

Folha - O Pantanal é personagem de suas obras?
Dicke -
Claro. Não existem mais os tropeiros, os carros de boi, como antigamente. Os vaqueiros andam de caminhão agora. Às vezes sou saudosista. Dá muita tristeza das queimadas, das coisas que fazem mal à natureza. De julho a setembro, o céu de Cuiabá fica preto.
E não tem jeito de acabar. A Chapada ainda é um território fechado, ninguém pode tirar a madeira, matar os peixes. Deviam fechar o Pantanal.


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