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Natureza insana, mentes insanas e amorais
ESPECIAL PARA A FOLHA
É uma narrativa em espiral,
que gira em torno de um
ponto fixo, afasta-se e se aproxima do eixo que avança. É assim
que pode ser definida de bate-pronto a obra "Grande Sertão:
Veredas". Guimarães Rosa criou
um eixo, o amor de Riobaldo, mas
circula ao redor dele, abre parênteses, conta histórias que se ligam
em outras em torno da história
central.
Numa primeira e rápida análise,
"O Salário dos Poetas", de Ricardo Guilherme Dicke, autor descoberto e, sem sombra de dúvidas,
influenciado por Rosa, tem uma
narrativa em espiral. E, como em
"Grande Sertão", um tiro ao longe
detona a narrativa.
O tiro, uma bala de prata calibre
22, acerta o peito de um vulto em
seu terno branco e chapéu panamá, parado junto a um cavalo
morto, um ex-ditador de Chileraguay, general Augusto Alfredo
Barahona, exilado no Brasil, no
Mato Grosso, onde o sol é de graça e nasce para todos.
Os capangas do ex-ditador, "el
general", correm para socorrê-lo.
Moscas voam em círculos. Lagartos preguiçosos cruzam a estrada.
Todos vêm das queimadas que
engolem os campos de todos os
lados. Nas águas, navegam tranquilos cardumes de lambaris prateados. As botas dos capangas pisam em tapetes de gafanhotos, em
bostas do gado, onde se escutam
até as moscas amodorradas.
É a fazenda Anhangá, em Portos
de Cabra, no rio Cuiabá, onde um
anão bêbado e asqueroso, doutor
Espárrago, salva a vida de "el general" realizando uma cirurgia
improvisada, enquanto uma voz
alça-se pela casa cantando um trecho de "Rigoletto" (Verdi).
Muito longe dali, em Porto Velho, um professor poeta, Florisbelo Frois, com livros publicados,
bebe sozinho no hotel Shangri-Lá.
Estava lá para caçar ouro ou diamante ou que maldição a terra
oferecesse. Trocou as brumas da
ilusão do saber pela mera ilusão
falaz do ouro. Nada encontrou.
Ele volta para a sua terra, Cuiabá. Na varanda da casa da mãe, lê
num anúncio de jornal que alguém muito rico dos Portos de
Cabra procurava um escritor para
refazer uns manuscritos velhos.
Fora "el general" quem anunciara. Moribundo, recolhido e ferido, com pavor dos inimigos e
fantasmas, o ex-ditador contrata
o professor formado em filosofia
e autor de dois livros, "Diário Solidão" e "Quase Sempre É de Tarde", para "ajambrar" seus manuscritos. O título? "A Morte de Sardanapalo" (título de um quadro
de Eugène Delacroix).
O professor se surpreende. Vê, à
sua frente, não a figura de um facínora que regeu com ferro e sangue por 40 anos uma republiqueta
vizinha, mas "um homem com
aspecto triste, enjoado de si mesmo, um sujeito comum, insípido
como um queijo apodrecido".
Cercados por uma natureza implacável que urra de dor, em cuja
noite "as moscas dormem sonhando com Zabud, o deus das
moscas de pernas de tíbias cruzadas", dois contrários se encontram para um acerto de contas.
Natureza insana, mentes insanas e amorais e um estilo denso e
circular compõem esta narrativa,
em que o ambiente é sufocado pela própria natureza.
(MRP)
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