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INÉDITOS
"Retratos Londrinos" reúne pela primeira vez em português crônicas jornalísticas de Charles Dickens, escritas antes de suas obras mais célebres
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Farpas londrinas
Charles Dickens (1812-1870),
antes de tornar-se o escritor de
obras como "Oliver Twist", era
um jovem jornalista que publicava crônicas sobre a sociedade britânica na imprensa. Seus primeiros textos foram reunidos em
"Retratos Londrinos" e estavam
inéditos em português até este
mês, quando a editora Record
lança uma versão do volume.
Leia abaixo um trecho de "As
Quatro Irmãs", texto que foi publicado no "Evening Chronicle",
em 18 de junho de 1835 e que faz
parte da coletânea.
A fileira de casas onde vivem
aquela velha senhora e seu vizinho inoportuno compreende,
dentro de seus limites, um grande
número de personagens, e disso
não temos a menor dúvida. Muito
mais até do que qualquer outro
bairro ou paróquia poderia ter.
Mas, como de fato não desejamos
alongar esses nossos retratos paroquianos, talvez seja melhor selecionar os mais curiosos e introduzi-los logo de uma vez sem
maiores delongas.
Falemos, então, das quatro senhoritas Willis, que se estabeleceram em nossa paróquia há 13
anos. Não deixa de ser melancólico constatar que o velho adágio
que diz "o tempo passa, inexorável, sem poupar ninguém" se aplica com tanta força a uma grande
parcela das criaturas e, por mais
que desejássemos esconder o fato,
a verdade é que mesmo há 13 anos
as senhoritas Willis já estavam
longe de ser jovens.
Nosso trabalho como cronistas
paroquiais, contudo, está acima
de qualquer coisa, e somos obrigados a declarar que, desde aquela época, as autoridades em casos
matrimoniais consideravam que
a mais jovem das senhoritas Willis estava em uma situação bem
complicada, enquanto a mais velha delas já estava definitivamente
descartada, como se tivesse sido
esquecida pela humanidade.
Em todo caso, as senhoritas Willis alugaram a casa que tinha acabado de ser pintada e lixada do
chão ao teto. As paredes internas
eram todas revestidas de madeira,
os mármores estavam limpos, as
velhas grades haviam sido retiradas e aquecedores, instalados.
Quatro árvores foram plantadas
no jardim dos fundos e uma porção de cestinhas cheias de cascalho, espalhadas pelo da frente.
Carroças trazendo móveis elegantes não paravam de chegar.
Venezianas foram colocadas nas
janelas e os carpinteiros, empenhados em vários serviços de conserto, reparos e alterações do lugar, não perdiam a chance de comentar com as criadas das outras
casas da rua como as senhoritas
Willis estavam começando de forma magnífica sua vida por lá.
As criadas contaram o fato às
patroas, as patroas contaram às
amigas e começou a circular pela
paróquia um vago rumor de que
no número 25 da Gordon Place se
haviam instalado quatro damas
imensamente ricas.
Finalmente as senhoritas Willis
se mudaram. E aí as visitas começaram. A casa era o mais bem-acabado exemplo de asseio -afinal, ali moravam as quatro senhoritas Willis. Cada mínima peça da
residência tinha um quê de formalismo e frieza -afinal, ali moravam as quatro senhoritas Willis.
Nada era visto fora de seu lugar,
nem mesmo uma mísera cadeira
-assim como nenhuma das quatro senhoritas Willis era vista fazendo algo fora do normal do que
costumava fazer. Lá estavam elas,
sentadas nos mesmos lugares, fazendo exatamente as mesmas coisas às mesmas horas.
A mais velha delas costumava
tricotar, enquanto a segunda desenhava e as outras duas faziam
duetos ao piano. Elas pareciam
não ter vida independente uma
das outras, tendo decidido ficar
juntas até o fim dos tempos. Eram
como grandes figuras das três
Graças em uma tapeçaria, acrescidas posteriormente de uma outra
do mesmo tipo, como em um lanche escolar. Ou, então, eram as
três Parcas com mais uma irmã,
ou gêmeas siamesas multiplicadas por dois (1).
A mais velha das senhoritas Willis tornou-se extremamente mal-humorada -o que fez com que
todas as outras logo ficassem mal-humoradas também. A mais velha das senhoritas Willis tornou-se resmungona e muito religiosa
-as outras irmãs ficaram decididamente resmungonas e carolas.
Qualquer coisa que a mais velha
fazia, as outras faziam também. E
qualquer coisa que alguma outra
pessoa fizesse, elas desaprovavam
completamente. E assim iam vegetando, vivendo numa harmonia polar entre si. Vez por outra
estendiam sua vidinha gelada aos
vizinhos, quando acontecia de
saírem ou de receberem alguma
visita "sossegada" em casa.
Três anos se passaram dessa
exata maneira, até que aconteceu
um fenômeno imprevisto e extraordinário. As senhoritas Willis
passaram a sentir os sintomas do
verão e, lentamente, o gelo começou a derreter, até que o degelo
fosse completo. Mas como era
possível? Uma das quatro senhoritas Willis ia se casar!
Mas de onde veio o tal marido?
Sob quais sentimentos o pobre
homem poderia estar atuando?
Ou, então, qual teria sido o processo racional que conseguiu convencer as quatro senhoritas Willis
de que era possível um homem se
casar com uma delas sem, necessariamente, ter de se casar com
todas as outras? Essas eram dúvidas muito profundas que nós tínhamos de solucionar.
De qualquer maneira, o certo é
que as visitas do Sr. Robinson
(um cavalheiro que trabalhava
numa repartição pública e que tinha, além do mais, um bom salário e alguns bens) eram bem recebidas, com as quatro senhoritas
Willis sendo cortejadas sem distinção pelo já citado senhor. Por
isso a vizinhança estava em polvorosa, tentando descobrir qual
das quatro senhoritas Willis era a
felizarda, e o anúncio feito pela
mais velha das senhoritas Willis
não ajudou nem um pouco a solucionar o problema: "Nós vamos
nos casar com o Sr. Robinson".
Era extraordinário. Elas estavam tão identificadas umas com
as outras que a curiosidade de todos -até da própria velha senhora- já estava quase passando dos
limites. O assunto era discutido
em cada mesinha de carteado ou
durante o chá. O cavalheiro idoso,
de conhecida natureza ardilosa,
não hesitou em expressar sua decidida opinião de que o Sr. Robinson tinha ascendência oriental
-na verdade, muçulmana- e
por isso tencionava casar com a
família inteira. E todos os vizinhos ficavam balançando a cabeça com gravidade, achando que
aquela história era realmente
muito misteriosa. Eles esperavam
que tudo terminasse bem, mas
que era estranho, era. (...)
Por volta das 7h45 de uma bela
manhã, duas reluzentes carruagens chegaram à porta das senhoritas Willis. Dez minutos antes, o
Sr. Robinson havia chegado em
um cabriolé. Ele estava vestindo
um paletó azul-claro, calças grossas de lã, lenço de pescoço, sapatos finos e luvas. (...) A notícia correu rapidamente de uma casa a
outra. Estava claro que o grande
dia havia chegado. Toda a vizinhança se postou para observar
por trás das venezianas, aguardando o desenlace da cena com a
respiração em suspenso (...)
(1) as três Graças e as Parcas: figuras mitológicas. As Graças eram as deusas dos banquetes, da dança e das artes; as Parcas eram as entidades que teciam o fio do destino humano (N.do T.).
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