UOL


São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Livro compõe a sinfonia de uma metrópole

CRÍTICO DA FOLHA

Nos anos 1830, antes de tornar-se o aclamado autor de obras como "Oliver Twist", "Nicholas Nickleby", "David Copperfield" e "Grandes Esperanças", Charles Dickens já causava furor na Inglaterra como jornalista. Com apenas 20 e poucos anos, ele dissecava os mais diversos aspectos da sociedade londrina em crônicas que fizeram tanto sucesso que foram reunidas em livro.
O resultado é este "Retratos Londrinos", expurgado de alguns textos do original de Dickens, intitulado "Sketches by Boz". Boz é um pseudônimo baseado na corruptela "Boses", o modo como o escritor pronunciava o nome "Moses" (Moisés) quando criança. Trata-se da primeira vez que uma coletânea dessas crônicas dickensianas é traduzida -felizmente, em versão esmerada- no Brasil.
Está longe de ser uma experiência anacrônica, mesmo quando levamos em conta que se passaram cerca de 170 anos desde que Dickens vagou pelas ruas de Londres, registrando anotações sobre os costumes de seus conterrâneos. Antes do cinema, era assim que a cidade era documentada. "Retratos Londrinos" é uma "Sinfonia de uma Metrópole" avant la lettre. Sentimos voltar ao passado tomados por uma vívida impressão de realidade.
Dickens às vezes literalmente (em ficção, é claro) toma nossas mãos e nos guia pelos quatro cantos da capital: do bulício do West End e Covent Garden até o centro financeiro da City, dos bairros de classe média baixa de Camden Town e Islington até as decadentes ruelas ao sul do Tâmisa.
Quem conhece a Londres de hoje pode pensar que ela se manteve igual, mas muita coisa mudou desde o reinado de Guilherme 4º, tio de Vitória. Cabriolés cruzavam as ruas, ultrapassando as pesadas carruagens de aluguel, que faziam três quilômetros por hora (embora pudessem chegar a quatro). Os antepassados dos ônibus atuais começavam a circular.
Em diversas esquinas, havia pontos de venda de ostras, cujos espécimes eram degustados na rua ou levados para os pubs ou teatros para serem devorados com conhaque ou rum com água. Na academia de dança do signor Billsmethi, que, apesar do título, era inglês, ensinavam-se passos de minueto e arranjavam-se casamentos.
O olhar de Dickens é quase sempre satírico. Seu alvo principal é a classe média: "Negociantes e escriturários, com as elegantes famílias de leitoras de romances e suas filhas assinantes de clubes de livro" que se reúnem "em modestas imitações de salões de festas", "jardins melancólicos de subúrbio" ou ainda para ridículos passeios náuticos pelo Tâmisa.
O repórter também nos apresenta o Parlamento, a faculdade de direito Doctors" Commons (que aparece em "David Copperfield"), a rua dos brechós ("o cemitério da moda") e os jantares de caridade. Por vezes detém-se diante de algum personagem pitoresco, como as quatro irmãs Willis, que andavam tão juntas que, quando uma delas se casou, os vizinhos não souberam precisar qual. Ou o velho namoradeiro John Dounce, quase arruinado por uma vendedora de ostras.
Para quem procura os tons mais sombrios encontrados nos romances posteriores de Dickens, é preciso dizer que o patético também comparece aqui na descrição de uma casa de penhores; de uma mulher espancada pelo marido (e que, à beira da morte, não o entrega à polícia); do carro de presos, apelidado ironicamente de carruagem real, que transporta prostitutas adolescentes, meninos órfãos, sem-tetos e "um homem que acabara de perder tudo -o caráter e a família depauperada por sua queda".
Eu disse que as coisas mudaram? Perdão. É provável que nós, nas margens do mundo globalizado, não estejamos tão distantes assim do epicentro da Revolução Industrial, tal como Dickens a descreve. (MARCELO PEN)


Avaliação:    


Texto Anterior: Inéditos: Farpas londrinas
Próximo Texto: A obra
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.