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CRÍTICA
Livro compõe a sinfonia de uma metrópole
CRÍTICO DA FOLHA
Nos anos 1830, antes de tornar-se o aclamado autor de
obras como "Oliver Twist", "Nicholas Nickleby", "David Copperfield" e "Grandes Esperanças",
Charles Dickens já causava furor
na Inglaterra como jornalista.
Com apenas 20 e poucos anos, ele
dissecava os mais diversos aspectos da sociedade londrina em crônicas que fizeram tanto sucesso
que foram reunidas em livro.
O resultado é este "Retratos
Londrinos", expurgado de alguns
textos do original de Dickens, intitulado "Sketches by Boz". Boz é
um pseudônimo baseado na corruptela "Boses", o modo como o
escritor pronunciava o nome
"Moses" (Moisés) quando criança. Trata-se da primeira vez que
uma coletânea dessas crônicas
dickensianas é traduzida -felizmente, em versão esmerada- no
Brasil.
Está longe de ser uma experiência anacrônica, mesmo quando
levamos em conta que se passaram cerca de 170 anos desde que
Dickens vagou pelas ruas de Londres, registrando anotações sobre
os costumes de seus conterrâneos. Antes do cinema, era assim
que a cidade era documentada.
"Retratos Londrinos" é uma "Sinfonia de uma Metrópole" avant la
lettre. Sentimos voltar ao passado
tomados por uma vívida impressão de realidade.
Dickens às vezes literalmente
(em ficção, é claro) toma nossas
mãos e nos guia pelos quatro cantos da capital: do bulício do West
End e Covent Garden até o centro
financeiro da City, dos bairros de
classe média baixa de Camden
Town e Islington até as decadentes ruelas ao sul do Tâmisa.
Quem conhece a Londres de hoje pode pensar que ela se manteve
igual, mas muita coisa mudou
desde o reinado de Guilherme 4º,
tio de Vitória. Cabriolés cruzavam as ruas, ultrapassando as pesadas carruagens de aluguel, que
faziam três quilômetros por hora
(embora pudessem chegar a quatro). Os antepassados dos ônibus
atuais começavam a circular.
Em diversas esquinas, havia
pontos de venda de ostras, cujos
espécimes eram degustados na
rua ou levados para os pubs ou
teatros para serem devorados
com conhaque ou rum com água.
Na academia de dança do signor
Billsmethi, que, apesar do título,
era inglês, ensinavam-se passos
de minueto e arranjavam-se casamentos.
O olhar de Dickens é quase sempre satírico. Seu alvo principal é a
classe média: "Negociantes e escriturários, com as elegantes famílias de leitoras de romances e
suas filhas assinantes de clubes de
livro" que se reúnem "em modestas imitações de salões de festas",
"jardins melancólicos de subúrbio" ou ainda para ridículos passeios náuticos pelo Tâmisa.
O repórter também nos apresenta o Parlamento, a faculdade
de direito Doctors" Commons
(que aparece em "David Copperfield"), a rua dos brechós ("o cemitério da moda") e os jantares
de caridade. Por vezes detém-se
diante de algum personagem pitoresco, como as quatro irmãs
Willis, que andavam tão juntas
que, quando uma delas se casou,
os vizinhos não souberam precisar qual. Ou o velho namoradeiro
John Dounce, quase arruinado
por uma vendedora de ostras.
Para quem procura os tons mais
sombrios encontrados nos romances posteriores de Dickens, é
preciso dizer que o patético também comparece aqui na descrição
de uma casa de penhores; de uma
mulher espancada pelo marido (e
que, à beira da morte, não o entrega à polícia); do carro de presos,
apelidado ironicamente de carruagem real, que transporta prostitutas adolescentes, meninos órfãos, sem-tetos e "um homem que
acabara de perder tudo -o caráter e a família depauperada por
sua queda".
Eu disse que as coisas mudaram? Perdão. É provável que nós,
nas margens do mundo globalizado, não estejamos tão distantes
assim do epicentro da Revolução
Industrial, tal como Dickens a
descreve.
(MARCELO PEN)
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