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"QUASE DOIS IRMÃOS"
Com experiências autobiográficas, cineasta mostra realidade de favela e prisão durante a ditadura
Lúcia Murat opõe ideologia a relações humanas em drama
TEREZA NOVAES
DA REPORTAGEM LOCAL
O abismo entre a favela e a classe
média carioca distancia a relação
fraternal dos protagonistas de
"Quase Dois Irmãos", longa de
Lúcia Murat que estréia hoje. "É
um filme sobre a separação", sintetiza a diretora de "Brava Gente
Brasileira", de 2000.
Os rumos dos personagens tomam direções opostas e são retratados em três momentos da história brasileira: a romantizada década de 50, os anos de chumbo da
ditadura militar e o tráfico de drogas nos dias de hoje.
Miguel e Jorge se conhecem na
infância, quando o pai do primeiro, jornalista apaixonado por
samba, leva o filho para as rodas
do pai do segundo, um sambista
interpretado por Luiz Melodia.
A representação dessas realidades distintas ultrapassa a metáfora "do morro à avenida beira-mar" e contrapõe o convívio dos
dois dentro do presídio de Ilha
Grande durante o regime militar.
Na cadeia, onde se misturavam
presos políticos e comuns, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os amigos se reencontram
-Miguel (Caco Ciocler) virou
militante, e Jorge (Flavio Bauraqui), assaltante.
Eles vivem em harmonia obedecendo ao código de conduta criado pelos "subversivos": os presos
não podem roubar, praticar a
"pederastia" ou fumar maconha.
Quando as regras começam a ser
quebradas pelos "comuns", o
"coletivo" (a organização criada e
defendida pelos companheiros
intelectuais) racha, e a dicotomia
social se reproduz dentro dos pavilhões da penitenciária.
A divergência entre os presos
-que teria dado origem à facção
criminosa Comando Vermelho- realmente aconteceu e foi
testemunhada pela diretora. Durante três anos e meio, Murat foi
presa política. Não esteve encarcerada na Ilha Grande, mas conheceu a prisão durante uma visita a um companheiro.
Da época em que esteve no
complexo de Bangu, na Baixada
Fluminense, ela se lembra da história de uma moça, presa por assalto a banco, que passou uma
temporada em sua galeria. "Um
dia estávamos juntas num camburão, e ela me perguntou se para
ser presa política precisava ser
universitária", recorda.
Não é a primeira vez que Murat
toca na ferida. Seu filme de estréia, "Que Bom te Ver Viva", de
1988, é um documentário sobre
mulheres torturadas durante o regime militar.
"Conheci essa situação, e isso
obviamente levantou algumas
questões, mas o que me levou a fazer o filme foi a realidade atual. Vi
filhas de amigos meus, meninas
de classe média, subirem o morro
para se relacionar com traficantes", conta Murat.
Anos depois da prisão, Miguel
(Werner Schünemann) é deputado e tem uma filha, Juliana (Maria
Flor), apaixonada por um garoto
que trabalha para o tráfico. Contra a vontade da família e do pai,
que acusa de preconceito contra
os moradores da favela, ela insiste
em subir o morro para encontrá-lo. Dessa forma, monta um quebra-cabeça das complexas relações desses mundos que muitas
vezes transcende a política.
"Meu pai era um médico progressista que atendia em favela e
me levava com ele. Menina, eu
freqüentava o morro. Minha babá
era proibida de entrar no elevador
social, minha mãe era de uma elite e se chocou com muitas coisas
que aconteceram. Essas experiências também estão no filme", afirma a cineasta.
Foi a parceria entre ela e o escritor Paulo Lins, que começou logo
após o lançamento do livro "Cidade de Deus", que permitiu que
o roteiro fosse crítico aos dois lados retratados.
"Acho que a luta pela liberdade
de expressão valeu para que eu
pudesse hoje fazer um filme que
critique e reflita sobre a situação.
O filme não fecha as questões, ele
abre."
Os seus companheiros de luta
que estiveram presos ajudaram
no projeto com depoimentos na
fase de construção do texto.
A parte que retrata o tráfico e o
morro nos dias de hoje foram elaboradas por Lins. "Dividimos as
tarefas, e o Paulo fez um trabalho
muito bom sobre uma realidade
que ele conhece muito bem", elogia Lúcia Murat.
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