São Paulo, sexta-feira, 01 de abril de 2005

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"QUASE DOIS IRMÃOS"

Com experiências autobiográficas, cineasta mostra realidade de favela e prisão durante a ditadura

Lúcia Murat opõe ideologia a relações humanas em drama

TEREZA NOVAES
DA REPORTAGEM LOCAL

O abismo entre a favela e a classe média carioca distancia a relação fraternal dos protagonistas de "Quase Dois Irmãos", longa de Lúcia Murat que estréia hoje. "É um filme sobre a separação", sintetiza a diretora de "Brava Gente Brasileira", de 2000.
Os rumos dos personagens tomam direções opostas e são retratados em três momentos da história brasileira: a romantizada década de 50, os anos de chumbo da ditadura militar e o tráfico de drogas nos dias de hoje.
Miguel e Jorge se conhecem na infância, quando o pai do primeiro, jornalista apaixonado por samba, leva o filho para as rodas do pai do segundo, um sambista interpretado por Luiz Melodia.
A representação dessas realidades distintas ultrapassa a metáfora "do morro à avenida beira-mar" e contrapõe o convívio dos dois dentro do presídio de Ilha Grande durante o regime militar.
Na cadeia, onde se misturavam presos políticos e comuns, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os amigos se reencontram -Miguel (Caco Ciocler) virou militante, e Jorge (Flavio Bauraqui), assaltante.
Eles vivem em harmonia obedecendo ao código de conduta criado pelos "subversivos": os presos não podem roubar, praticar a "pederastia" ou fumar maconha. Quando as regras começam a ser quebradas pelos "comuns", o "coletivo" (a organização criada e defendida pelos companheiros intelectuais) racha, e a dicotomia social se reproduz dentro dos pavilhões da penitenciária.
A divergência entre os presos -que teria dado origem à facção criminosa Comando Vermelho- realmente aconteceu e foi testemunhada pela diretora. Durante três anos e meio, Murat foi presa política. Não esteve encarcerada na Ilha Grande, mas conheceu a prisão durante uma visita a um companheiro.
Da época em que esteve no complexo de Bangu, na Baixada Fluminense, ela se lembra da história de uma moça, presa por assalto a banco, que passou uma temporada em sua galeria. "Um dia estávamos juntas num camburão, e ela me perguntou se para ser presa política precisava ser universitária", recorda.
Não é a primeira vez que Murat toca na ferida. Seu filme de estréia, "Que Bom te Ver Viva", de 1988, é um documentário sobre mulheres torturadas durante o regime militar.
"Conheci essa situação, e isso obviamente levantou algumas questões, mas o que me levou a fazer o filme foi a realidade atual. Vi filhas de amigos meus, meninas de classe média, subirem o morro para se relacionar com traficantes", conta Murat.
Anos depois da prisão, Miguel (Werner Schünemann) é deputado e tem uma filha, Juliana (Maria Flor), apaixonada por um garoto que trabalha para o tráfico. Contra a vontade da família e do pai, que acusa de preconceito contra os moradores da favela, ela insiste em subir o morro para encontrá-lo. Dessa forma, monta um quebra-cabeça das complexas relações desses mundos que muitas vezes transcende a política.
"Meu pai era um médico progressista que atendia em favela e me levava com ele. Menina, eu freqüentava o morro. Minha babá era proibida de entrar no elevador social, minha mãe era de uma elite e se chocou com muitas coisas que aconteceram. Essas experiências também estão no filme", afirma a cineasta.
Foi a parceria entre ela e o escritor Paulo Lins, que começou logo após o lançamento do livro "Cidade de Deus", que permitiu que o roteiro fosse crítico aos dois lados retratados.
"Acho que a luta pela liberdade de expressão valeu para que eu pudesse hoje fazer um filme que critique e reflita sobre a situação. O filme não fecha as questões, ele abre."
Os seus companheiros de luta que estiveram presos ajudaram no projeto com depoimentos na fase de construção do texto.
A parte que retrata o tráfico e o morro nos dias de hoje foram elaboradas por Lins. "Dividimos as tarefas, e o Paulo fez um trabalho muito bom sobre uma realidade que ele conhece muito bem", elogia Lúcia Murat.


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