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CRÍTICA
Diretora brasileira radiografa o dilaceramento social brasileiro
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em seu épico "1900", Bernardo
Bertolucci observa a história
do século 20 na Itália por meio da
trajetória de dois amigos de infância de classes antagônicas.
Em "Quase Dois Irmãos", Lúcia
Murat se serve de um prisma semelhante para examinar a tragédia social brasileira.
Jorge, o filho negro de um sambista, e Miguel, o filho branco de
um jornalista, amigos quando
meninos, se reencontram anos
depois numa prisão: o primeiro
(Flavio Bauraqui) como preso comum, o segundo (Caco Ciocler)
como preso político.
Esse encontro de grupos distintos ocorreu de fato em prisões do
Rio de Janeiro nos anos 70. Segundo consta, o Comando Vermelho teve ali a sua origem.
O que era para ser uma utopia
-a confluência entre a consciência política de ativistas de esquerda e a energia popular dos "rebeldes primitivos" do morro- acabou virando um pesadelo, conforme fica claro no segmento do
filme dedicado ao tempo presente, no qual Miguel (Werner Schünemann) é um deputado e Jorge
(Antonio Pompeo) lidera o tráfico a partir da prisão.
Lúcia Murat desenvolveu esse
poderoso argumento com a precisão de um teorema. Em vez de
empreender uma narração linear,
ela optou por alternar ao longo do
filme seus três momentos temporais -a infância, a juventude e a
maturidade dos protagonistas.
Não é apenas um artifício para
tornar a narrativa mais ágil mas
também um modo de sublinhar o
caráter trágico dessa amizade e de
tudo o que ela significa. Pois a essência da tragédia, como alguém
já disse, consiste no fato de que todos têm razão (à diferença do melodrama, onde há os "bons" e os
"maus").
O Jorge chefão implacável do
tráfico é o mesmo Jorginho que ficava acordado até tarde ouvindo
os sambas do pai e o mesmo Jorge
que contribuiu com sua malandragem para a organização dos
presos numa cadeia da ditadura.
O mesmo vale para o Miguel idealista dos anos 70 e o Miguel que
hoje tem de lidar com negociações delicadas no Congresso e fora dele.
Esses mundos separados perpetuam entre si uma relação mista
de fascínio e repulsa. A filha de
Miguel (Maria Flor) sobe o morro
para namorar com um jovem líder do tráfico. A possibilidade de
harmonia entre eles é a mesma
que havia entre o intelectual português e a índia guaicuru no filme
anterior da diretora, "Brava Gente
Brasileira".
O tema de Lúcia Murat são esses
divórcios dilacerantes que compõem a nossa desgraça. Ao olhar
para o passado, sua preocupação
está voltada para o presente e para
o futuro.
Aqui, além da ajuda inestimável
do co-roteirista Paulo Lins para a
criação de personagens e situações verossímeis, ela contou com
um elenco afinado, com uma
montagem ao mesmo tempo poética e funcional (de Mair Tavares)
e com a música pungente de Naná
Vasconcelos.
A exemplo de uns poucos filmes
recentes, como "Ônibus 174" e "O
Invasor", "Quase Dois Irmãos"
não nos oferece alívio nem catarse, mas o mal-estar de fazer parte
de um país fraturado e à deriva.
Quase Dois Irmãos
Direção: Lúcia Murat
Produção: Brasil/Chile/França, 2004
Com: Caco Ciocler, Flavio Bauraqui
Quando: a partir de hoje nos cines
Espaço Unibanco, Lumière e circuito
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