São Paulo, sexta-feira, 01 de abril de 2005

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CRÍTICA

Diretora brasileira radiografa o dilaceramento social brasileiro

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em seu épico "1900", Bernardo Bertolucci observa a história do século 20 na Itália por meio da trajetória de dois amigos de infância de classes antagônicas.
Em "Quase Dois Irmãos", Lúcia Murat se serve de um prisma semelhante para examinar a tragédia social brasileira.
Jorge, o filho negro de um sambista, e Miguel, o filho branco de um jornalista, amigos quando meninos, se reencontram anos depois numa prisão: o primeiro (Flavio Bauraqui) como preso comum, o segundo (Caco Ciocler) como preso político.
Esse encontro de grupos distintos ocorreu de fato em prisões do Rio de Janeiro nos anos 70. Segundo consta, o Comando Vermelho teve ali a sua origem.
O que era para ser uma utopia -a confluência entre a consciência política de ativistas de esquerda e a energia popular dos "rebeldes primitivos" do morro- acabou virando um pesadelo, conforme fica claro no segmento do filme dedicado ao tempo presente, no qual Miguel (Werner Schünemann) é um deputado e Jorge (Antonio Pompeo) lidera o tráfico a partir da prisão.
Lúcia Murat desenvolveu esse poderoso argumento com a precisão de um teorema. Em vez de empreender uma narração linear, ela optou por alternar ao longo do filme seus três momentos temporais -a infância, a juventude e a maturidade dos protagonistas.
Não é apenas um artifício para tornar a narrativa mais ágil mas também um modo de sublinhar o caráter trágico dessa amizade e de tudo o que ela significa. Pois a essência da tragédia, como alguém já disse, consiste no fato de que todos têm razão (à diferença do melodrama, onde há os "bons" e os "maus").
O Jorge chefão implacável do tráfico é o mesmo Jorginho que ficava acordado até tarde ouvindo os sambas do pai e o mesmo Jorge que contribuiu com sua malandragem para a organização dos presos numa cadeia da ditadura. O mesmo vale para o Miguel idealista dos anos 70 e o Miguel que hoje tem de lidar com negociações delicadas no Congresso e fora dele.
Esses mundos separados perpetuam entre si uma relação mista de fascínio e repulsa. A filha de Miguel (Maria Flor) sobe o morro para namorar com um jovem líder do tráfico. A possibilidade de harmonia entre eles é a mesma que havia entre o intelectual português e a índia guaicuru no filme anterior da diretora, "Brava Gente Brasileira".
O tema de Lúcia Murat são esses divórcios dilacerantes que compõem a nossa desgraça. Ao olhar para o passado, sua preocupação está voltada para o presente e para o futuro.
Aqui, além da ajuda inestimável do co-roteirista Paulo Lins para a criação de personagens e situações verossímeis, ela contou com um elenco afinado, com uma montagem ao mesmo tempo poética e funcional (de Mair Tavares) e com a música pungente de Naná Vasconcelos.
A exemplo de uns poucos filmes recentes, como "Ônibus 174" e "O Invasor", "Quase Dois Irmãos" não nos oferece alívio nem catarse, mas o mal-estar de fazer parte de um país fraturado e à deriva.


Quase Dois Irmãos
   
Direção: Lúcia Murat
Produção: Brasil/Chile/França, 2004
Com: Caco Ciocler, Flavio Bauraqui
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco, Lumière e circuito


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