São Paulo, segunda-feira, 01 de maio de 2000


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Baixada Fluminense leva à Itália o balé do extermínio

Bel Pedrosa/Folha Imagem
O grupo carioca Cia. Luar de Dança ensaia antes de partir em turnê de cinco semanas na Itália





Grupo de dança de bairro pobre de Duque de Caxias apresenta, em palcos italianos, a matança de crianças na América Latina

FERNANDA DA ESCÓSSIA
da Sucursal do Rio

A tarde de 18 de abril de 1990 é de temporal no Jardim Primavera, bairro pobre de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense.
Presas na igreja, sem poder ir para casa por causa das ruas inundadas, crianças conhecem uma bailarina disposta a lhes ensinar balé. Para não assustar os garotos, que achavam que balé era coisa de menina, a bailarina diz que o curso é de teatro.
Dez anos depois, na mesma igreja, o mesmo grupo se apresenta para a comunidade. É a Companhia Luar de Dança em ação, fazendo o ensaio geral do balé "O Grito de Raquel", antes de iniciar uma turnê de cinco semanas pela Itália.
Os bailarinos são 14, eletricistas, pedreiros, secretárias, cabeleireiras, estudantes de famílias pobres de Caxias. Passaram os últimos dez anos aprendendo balé clássico com Rita Serpa, a bailarina que ficou presa na igreja na tarde do temporal.
A igreja foi a academia onde eles instalaram barras e treinaram nos fins-de-semana. Os bailarinos da Companhia Luar sabem que, dançando, mudam o rumo da própria vida em meio à violência da Baixada Fluminense, uma área marcada pelo tráfico de drogas e por grupos de extermínio.
Até o nome do grupo foi escolhido por eles: Luar de Dança. "Luar é imensidão, luz, sonho. Quando eu comecei a dançar, havia sempre um morto na esquina, e esse poderia ser meu destino. Dançando, vi que a vida pode ser melhor", conta o bailarino Deco Baptista, 25.
O espetáculo "O Grito de Raquel" foi encomendado pela organização italiana católica Capodarco, que paga também a viagem da companhia à Itália.
Escrito por um frade italiano, "O Grito de Raquel" usa o nascimento e a morte de Cristo como metáfora para o extermínio de crianças na América Latina. Raquel, personagem do Antigo Testamento, simboliza na "Bíblia" o sofrimento da mãe que perde seus filhos.
A bailarina Rita Serpa, criadora do Luar de Dança, coreografou o espetáculo em sete números. Um deles é a encenação do texto "Os Gamines", do escritor uruguaio Eduardo Galeano, sobre meninos de rua colombianos.
O bailarino e eletricista Nino Douglas, 20, vive no palco o menino colombiano de 7 anos, preso por roubar um pão.
Galeano é autor de um clássico da literatura latino-americana, "As Veias Abertas da América Latina". Seu tradutor no Brasil, Eric Nepomuceno, intermediou a cessão do texto para a companhia.
Especialmente inspirada é a coreografia para "Angélica", canção de Chico Buarque para a estilista Zuzu Angel, morta em 1976 quando cobrava do governo militar informações sobre o filho Stuart Angel, guerrilheiro assassinado em 1971 nas dependências da Aeronáutica no Rio.
Para falar da dor da mãe que perde o filho, as garotas do grupo embalam os rapazes, como a mãe da canção de Chico embala "o filho que mora na escuridão do mar".
Nos outros números, uma canção de Milton Nascimento, uma ária das Bachianas número 5, de Heitor Villa-Lobos, uma missa em tupi-guarani, um lundu e uma canção inspirada em ritmos nordestinos, mostrando como as mulheres tecem a história.
Criadora do grupo e do espetáculo, Rita Serpa espera que a turnê na Itália abra novas portas para o Luar de Dança no Brasil. Mas não sonha em mandar ninguém para estudar no exterior: "O lugar deles é no Jardim Primavera, dançando a vida deles".


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