São Paulo, segunda-feira, 01 de maio de 2000


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16ª BIENAL DO LIVRO

"Extinção" é diálogo interior vertiginoso

MARCELO PEN
especial para a Folha



Ler o escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) é o equivalente literário de andar de montanha-russa. Com duas prováveis exceções: essa é uma imagem fácil, coisa rara em Bernhard; e o passeio levará muito mais longe, durará muito mais tempo e exigirá de você muito mais fôlego do que qualquer artifício mecânico.
Respirar? Em "Extinção" -seu último romance, que será lançado nesta Bienal do Livro-, só é permitido duas vezes. Uma, após mais de 200 páginas, quando se encerra a primeira parte e o primeiro longo parágrafo do livro; a outra, no final, ao termo do segundo parágrafo.
A afirmação pode causar estranheza aos não iniciados no autor, mas é isso mesmo. O romance é formado por dois parágrafos de mais de 200 páginas cada um. Não podia ser diferente, pois o terreno a ser explorado é o do mais puro monólogo interior.
Para cada parte, há um palco aparente. O primeiro é o apartamento do protagonista, diante do panteão romano. Lá, Franz-Josef Murau recebe um telegrama: "Pais e Johannes mortos em acidente. Caecilia, Amalia." Depois, quase nada, a rigor, acontece.
Murau lê e relê o telegrama. Olha e torna a olhar as fotografias dos seus. E nada mais.
Ao menos na superfície, porque a ação é toda interna. Mergulhamos fundo nas lembranças, devaneios e obsessões do narrador.
Poucos dias antes ele chegara da propriedade dos pais, Wolfsegg, na Áustria, onde presenciara o casamento da irmã Caecilia. Retornar não lhe é agradável. Assim como não lhe apraz encarar as irmãs e a parentada, lidar com os fantasmas familiares e assumir o papel de herdeiro de um império que sempre lhe fora negado.
Sensível e iconoclasta como seu tio Georg, fora considerado ovelha negra pela família. Preferiu fugir desse império rural que serviu de bom grado ao Reich. Há algo de podre no Estado da Áustria, poderíamos plagiar. Mesmo em Roma, Wolfsegg (e o que ela representa) o persegue. Para Murau, superá-la é um exercício de construção e aniquilamento.
Diz ele: "..meu relato só existe para extinguir o que nele vem descrito, extinguir tudo o que entendo por Wolfsegg, e tudo o que Wolfsegg é... Meu relato nada mais é a não ser uma extinção".
Estranho desejo, sobretudo se considerarmos que, em pensamento e palavras, Murau recria Wolfsegg. Em vez de destruí-la, ele a faz renascer, para nós, em todo esplendor e maleficência. Apenas para descrever-lhe a arquitetura, gasta dezenas de páginas.
Na segunda parte, a cena se desloca. Como Hamlet, Murau volta ao lar, escondido, hesitante, observando de viés os preparativos para um funeral. Mas a mudança espacial é só ilusória.
O único palco possível é a mente de Murau, onde todos os eventos se dão, todos os embates se travam, toda a construção e também toda a extinção é possível. Como em "Hamlet", a derrocada é absoluta, não só de seus protagonistas, mas de Elsinore/ Wolfsegg. Há uma inversão irônica, porém. Em vez de vingar o pai, Murau acaba por resgatar o iluminismo do tio.
No final de "Ulisses", James Joyce deixa Molly Bloom desfiar seus pensamentos num famoso monólogo. O trecho chocou, principalmente pelos inúmeros palavrões, e também desconcertou, pois não há nele pontuação.
Bernhard mantém os sinais, mas o resultado não é menos estonteante. Grandiloquente, repetitivo, hipnotizante, cômico, às vezes contraditório, à beira de um ataque de nervos, mas nunca mediano, "Extinção" está para o monólogo de Molly assim como o banquete para o aperitivo. E, ao contrário da montanha-russa e de alguns acepipes, nunca enjoa.


Avaliação:    



Livro: Extinção
Autor: Thomas Bernhard
Tradutor: José Marcos Mariani de Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (480 págs.)




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