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16ª BIENAL DO LIVRO
"Extinção" é diálogo interior vertiginoso
MARCELO PEN
especial para a Folha
Ler o escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) é
o equivalente literário de andar de
montanha-russa.
Com duas prováveis exceções: essa é uma imagem fácil, coisa rara
em Bernhard; e o passeio levará
muito mais longe, durará muito
mais tempo e exigirá de você muito mais fôlego do que qualquer artifício mecânico.
Respirar? Em "Extinção" -seu
último romance, que será lançado
nesta Bienal do Livro-, só é permitido duas vezes. Uma, após
mais de 200 páginas, quando se
encerra a primeira parte e o primeiro longo parágrafo do livro; a
outra, no final, ao termo do segundo parágrafo.
A afirmação pode causar estranheza aos não iniciados no autor,
mas é isso mesmo. O romance é
formado por dois parágrafos de
mais de 200 páginas cada um.
Não podia ser diferente, pois o
terreno a ser explorado é o do
mais puro monólogo interior.
Para cada parte, há um palco
aparente. O primeiro é o apartamento do protagonista, diante do
panteão romano. Lá, Franz-Josef
Murau recebe um telegrama:
"Pais e Johannes mortos em acidente. Caecilia, Amalia." Depois,
quase nada, a rigor, acontece.
Murau lê e relê o telegrama.
Olha e torna a olhar as fotografias
dos seus. E nada mais.
Ao menos na superfície, porque
a ação é toda interna. Mergulhamos fundo nas lembranças, devaneios e obsessões do narrador.
Poucos dias antes ele chegara da
propriedade dos pais, Wolfsegg,
na Áustria, onde presenciara o casamento da irmã Caecilia. Retornar não lhe é agradável. Assim como não lhe apraz encarar as irmãs
e a parentada, lidar com os fantasmas familiares e assumir o papel
de herdeiro de um império que
sempre lhe fora negado.
Sensível e iconoclasta como seu
tio Georg, fora considerado ovelha negra pela família. Preferiu fugir desse império rural que serviu
de bom grado ao Reich. Há algo
de podre no Estado da Áustria,
poderíamos plagiar. Mesmo em
Roma, Wolfsegg (e o que ela representa) o persegue. Para Murau, superá-la é um exercício de
construção e aniquilamento.
Diz ele: "..meu relato só existe
para extinguir o que nele vem descrito, extinguir tudo o que entendo por Wolfsegg, e tudo o que
Wolfsegg é... Meu relato nada
mais é a não ser uma extinção".
Estranho desejo, sobretudo se
considerarmos que, em pensamento e palavras, Murau recria
Wolfsegg. Em vez de destruí-la,
ele a faz renascer, para nós, em todo esplendor e maleficência. Apenas para descrever-lhe a arquitetura, gasta dezenas de páginas.
Na segunda parte, a cena se desloca. Como Hamlet, Murau volta
ao lar, escondido, hesitante, observando de viés os preparativos
para um funeral. Mas a mudança
espacial é só ilusória.
O único palco possível é a mente
de Murau, onde todos os eventos
se dão, todos os embates se travam, toda a construção e também
toda a extinção é possível. Como
em "Hamlet", a derrocada é absoluta, não só de seus protagonistas,
mas de Elsinore/ Wolfsegg. Há
uma inversão irônica, porém. Em
vez de vingar o pai, Murau acaba
por resgatar o iluminismo do tio.
No final de "Ulisses", James Joyce deixa Molly Bloom desfiar seus
pensamentos num famoso monólogo. O trecho chocou, principalmente pelos inúmeros palavrões, e também desconcertou,
pois não há nele pontuação.
Bernhard mantém os sinais,
mas o resultado não é menos estonteante. Grandiloquente, repetitivo, hipnotizante, cômico, às
vezes contraditório, à beira de um
ataque de nervos, mas nunca mediano, "Extinção" está para o monólogo de Molly assim como o
banquete para o aperitivo. E, ao
contrário da montanha-russa e de
alguns acepipes, nunca enjoa.
Avaliação:
Livro: Extinção
Autor: Thomas Bernhard
Tradutor: José Marcos Mariani de
Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (480 págs.)
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