São Paulo, quarta-feira, 01 de maio de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

"ABRIL DESPEDAÇADO"

Adaptação a romance do albanês Ismail Kadaré faz citações a Glauber Rocha e Vladimir Carvalho

Walter Salles transfigura o cinema novo

DA SUCURSAL DO RIO

Só neste ano, filhos morrem e pais sobrevivem no italiano "O Quarto do Filho", de Nanni Moretti, e nos norte-americanos "Entre Quatro Paredes", de Todd Field, e "A Última Ceia", de Marc Forster. São filmes sombrios, nos quais os pais sobrevivem para expiar a culpa, real ou imaginária, pela morte dos filhos.
No indiano "Um Casamento à Indiana", de Mira Nair, no francês "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", de Jean-Pierre Jeunet, e no americano "Os Excêntricos Tenenbaums", de Wes Anderson, a conciliação entre pais e filhos se mostra possível.
No americano "Histórias Proibidas", de Todd Solondz, no brasileiro "Lavoura Arcaica", de Luiz Fernando Carvalho, e no mexicano "E Sua Mãe Também", de Alfonso Cuarón, tal conciliação é problematizada.
"Abril Despedaçado" também revolve os choques entre pais e filhos. Mas Walter Salles é um precursor no tratamento do tema. Seu ponto de vista é o dos filhos órfãos, entregues à própria sorte, tanto em "Terra Estrangeira" como em "Central do Brasil".
Em "Abril Despedaçado", os filhos Pacu (Ravi Ramos Lacerda) e Tonho (Rodrigo Santoro) são pródigos. Um escapa da engrenagem familiar e social que os condena à morte por meio da imaginação, caso do pequeno Pacu, ou da fuga, como faz o jovem Tonho.
O trabalho é visto no filme como faina brutalizadora. A moenda de cana, uma bolandeira, é um enorme relógio que marca um tempo inexoravelmente circular, no qual não há possibilidade de avanço ou transformação.
A família significa submissão dos filhos aos pais, e destes ao tempo, aos códigos imemoriais de vingança que marcam a disputa pela terra.
Tanto a família Breves, de Pacu e Tonho, que cultiva cana, como a de seus antagonistas, os Ferreiras, que criam gado, vivem numa estrutura feudal.
O sonho da transformação entra nesse universo por meio da passagem de dois artistas de circo pela região, Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos) e Clara (Flavia Marco Antonio).
Salustiano confere individualidade ao menino Breves, batizando-o com o nome de um peixe, Pacu. Clara dá um livro de histórias a Pacu e o ensina a fabular, a imaginar uma sereia no sertão. A Tonho, Clara ensina o que é o amor.
Salustiano e Clara vivem um arranjo familiar de paternalismo atenuado. O filme não explicita a relação entre eles, limitando-se a apresentá-los como padrasto e enteada, mas deixa claro que eles se amam e são felizes. Ambos despertam o sentimento da fraternidade em Tonho e Pacu.
A suavidade silenciosa de Clara, o perigo e a vivacidade que ela transmite ao girar velozmente na corda do trapézio e ao cuspir labaredas formidáveis são momentos de verdade poética.
Num filme fechado e árido, Flavia Marco Antonio encarna o vento da liberdade. Por meio da jovem atriz, Walter Salles resume sua concepção do que seja arte: iluminação, abertura para o risco, para uma vida que vença os ditames do patriarcalismo.

Referências
Duas citações cinematográficas são decisivas para dar ao filme uma dimensão histórica e nacional. A moenda de "Abril Despedaçado" foi diretamente inspirada pelo documentário "A Bolandeira", de Vladimir Carvalho.
E o final, na cena em que Tonho caminha reto pelo sertão e chega ao mar, é uma reprodução do encerramento do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha.
A denúncia de "A Bolandeira" e a alegoria da revolução no fim de "Deus e o Diabo" são momentos exemplares do cinema novo. Eles são transfigurados pelo cineasta Walter Salles.
A clave agora é mítica e familiar. Mas a sociedade à qual o cinema novo deu resposta é estruturalmente a mesma. Mais de 40 anos se passaram e ainda vive a esperança de que o mar vire sertão.
(MARIO SERGIO CONTI)



Abril Despedaçado     
Direção: Walter Salles
Produção: Brasil, 2002
Com: Ravi Ramos Lacerda, Rodrigo Santoro, José Dumont, Flavia Marco Antonio
Quando: a partir de hoje nos cines Pátio Higienópolis, Jardim Sul, Metrô Santa Cruz, Villa-Lobos, Espaço Unibanco e circuito




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