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CINEMA/ESTRÉIA
"ABRIL DESPEDAÇADO"
Adaptação a romance do albanês Ismail Kadaré faz citações a Glauber Rocha e Vladimir Carvalho
Walter Salles transfigura o cinema novo
DA SUCURSAL DO RIO
Só neste ano, filhos morrem e
pais sobrevivem no italiano
"O Quarto do Filho", de Nanni
Moretti, e nos norte-americanos
"Entre Quatro Paredes", de Todd
Field, e "A Última Ceia", de Marc
Forster. São filmes sombrios, nos
quais os pais sobrevivem para expiar a culpa, real ou imaginária,
pela morte dos filhos.
No indiano "Um Casamento à
Indiana", de Mira Nair, no francês
"O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain", de Jean-Pierre Jeunet, e
no americano "Os Excêntricos
Tenenbaums", de Wes Anderson,
a conciliação entre pais e filhos se
mostra possível.
No americano "Histórias Proibidas", de Todd Solondz, no brasileiro "Lavoura Arcaica", de Luiz
Fernando Carvalho, e no mexicano "E Sua Mãe Também", de Alfonso Cuarón, tal conciliação é
problematizada.
"Abril Despedaçado" também
revolve os choques entre pais e filhos. Mas Walter Salles é um precursor no tratamento do tema.
Seu ponto de vista é o dos filhos
órfãos, entregues à própria sorte,
tanto em "Terra Estrangeira" como em "Central do Brasil".
Em "Abril Despedaçado", os filhos Pacu (Ravi Ramos Lacerda) e
Tonho (Rodrigo Santoro) são
pródigos. Um escapa da engrenagem familiar e social que os condena à morte por meio da imaginação, caso do pequeno Pacu, ou
da fuga, como faz o jovem Tonho.
O trabalho é visto no filme como faina brutalizadora. A moenda de cana, uma bolandeira, é um
enorme relógio que marca um
tempo inexoravelmente circular,
no qual não há possibilidade de
avanço ou transformação.
A família significa submissão
dos filhos aos pais, e destes ao
tempo, aos códigos imemoriais
de vingança que marcam a disputa pela terra.
Tanto a família Breves, de Pacu
e Tonho, que cultiva cana, como a
de seus antagonistas, os Ferreiras,
que criam gado, vivem numa estrutura feudal.
O sonho da transformação entra nesse universo por meio da
passagem de dois artistas de circo
pela região, Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos) e Clara (Flavia
Marco Antonio).
Salustiano confere individualidade ao menino Breves, batizando-o com o nome de um peixe,
Pacu. Clara dá um livro de histórias a Pacu e o ensina a fabular, a
imaginar uma sereia no sertão. A
Tonho, Clara ensina o que é o
amor.
Salustiano e Clara vivem um arranjo familiar de paternalismo
atenuado. O filme não explicita a
relação entre eles, limitando-se a
apresentá-los como padrasto e
enteada, mas deixa claro que eles
se amam e são felizes. Ambos despertam o sentimento da fraternidade em Tonho e Pacu.
A suavidade silenciosa de Clara,
o perigo e a vivacidade que ela
transmite ao girar velozmente na
corda do trapézio e ao cuspir labaredas formidáveis são momentos
de verdade poética.
Num filme fechado e árido, Flavia Marco Antonio encarna o
vento da liberdade. Por meio da
jovem atriz, Walter Salles resume
sua concepção do que seja arte:
iluminação, abertura para o risco,
para uma vida que vença os ditames do patriarcalismo.
Referências
Duas citações cinematográficas
são decisivas para dar ao filme
uma dimensão histórica e nacional. A moenda de "Abril Despedaçado" foi diretamente inspirada pelo documentário "A Bolandeira", de Vladimir Carvalho.
E o final, na cena em que Tonho
caminha reto pelo sertão e chega
ao mar, é uma reprodução do encerramento do filme "Deus e o
Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha.
A denúncia de "A Bolandeira" e
a alegoria da revolução no fim de
"Deus e o Diabo" são momentos
exemplares do cinema novo. Eles
são transfigurados pelo cineasta
Walter Salles.
A clave agora é mítica e familiar.
Mas a sociedade à qual o cinema
novo deu resposta é estruturalmente a mesma. Mais de 40 anos
se passaram e ainda vive a esperança de que o mar vire sertão.
(MARIO SERGIO CONTI)
Abril Despedaçado

Direção: Walter Salles
Produção: Brasil, 2002
Com: Ravi Ramos Lacerda, Rodrigo
Santoro, José Dumont, Flavia Marco
Antonio
Quando: a partir de hoje nos cines Pátio
Higienópolis, Jardim Sul, Metrô Santa
Cruz, Villa-Lobos, Espaço Unibanco e
circuito
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