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GASTRONOMIA
Banquete de Deus
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Missa das seis. A fila da comunhão é grande, o padre
entrega o corpo de Deus nas mãos
do comungante. É uma hora íntima, uns saem rindo de felicidade,
outros curvos pelo peso dela.
Há pequenos problemas. Nos
colégios de freiras e de padres se
ensinava que, mordida a hóstia, o
sangue de Cristo jorraria, então
tem sempre gente com cuidados,
pois muitas vezes o pão santo gruda no céu da boca, é preciso soltá-lo devagarinho, com a ponta da
língua.
Meu amigo brincava de missa.
Aos seis anos, como não sabia latim, na hora da consagração ele
substituía as palavras por: "Te como, te bebo, te papo", bem baixinho, murmurando, tal qual.
Enquanto cada um se resolve,
naquela proximidade úmida com
Deus, de união, de banquete, o
padre arruma a mesa, guarda o
que restou da festa, dobra os paninhos, espanta as migalhas com
cuidados de dona-de-casa, num
rito finalíssimo de já-comemos-e
bebemos, cada um que pegue a
estrada.
Lembrei disso tudo porque peguei uma revista dessas modernas, a "Colors", número 54, que
fala sobre hóstias nas suas "páginas amarelas", de serviços (que é
cor-de-rosa)! Espanto-me por ter
passado uma vida sem reparar na
substância da hóstia, na sua aparência, no gosto. Na sua moda!
A hóstia tem moda. Hoje são
minimalistas, vendem mais as de
uma cruz; as de cruz e cordeirinho estão em baixa, cordeiro de
Deus que tirais os pecados do
mundo, tende piedade de nós.
Penso muito em particular se
seria possível sussurrar ao padre
na hora santa que queria uma
hóstia para viagem. E a observaria
em casa, com especial atenção,
mas suponho que não, só contrabandeada, de algum modo.
Tem tanta coisa de hóstia que a
gente não imagina. Sabe que padre diabético e com intolerância a
glúten tem hóstia especial? E sabe
que, em Montserrat, o mosteiro
catalão, a hóstia é integral, meio
marronzinha? Num livro do italiano Camporesi, ele conta que
um bolor na hóstia dava baratos
alucinógenos incríveis! É assim, o
mundo mundaniza o místico, que
continua místico assim mesmo.
E não é fácil como pode parecer
a feitura de uma hóstia. De pura
farinha de trigo e água, e tem que
ter uma proporção perfeita de
água para que não fique muito seca e se quebre, nem fique muito
úmida e mofe.
Imaginem que até uma possibilidade turística há nas hóstias modernas, e não é heresia nenhuma,
pois a hóstia, antes de ser consagrada, é pão, como qualquer outro pão. Pois nos convidam a
comprar as hóstias no convento
de S. Maria Madre della Chiesa e
di S. Benedetto, na cidade de San
Giuliano, Terme. O convento
abriga a fábrica Pane e Vita, onde
três freiras produzem 3 milhões
de hóstias por mês.
Você assiste à fabricação, pode
se hospedar num dos quartos e
passear a pé ou de bicicleta pela
Toscana. Sem contar que a biblioteca tem 10 mil livros interessantes. O site está em construção,
mas dá para ver a beleza do lu-
gar.O inglês está em construção,
entre no italiano. Ou é o contrário
(www.geocities.com/benedettine-pisa)?
E é tão grande a sede de santidade que, em novembro de 2002, em
Bangalore, na Índia, uma senhora, Sheela, voltava da igreja e, ao
chegar em casa, começou a fazer
chapatis para os filhos, que é
aquele pão chato, indiano, que se
pode fazer rapidamente na frigideira. Bom, misturou farinha e
água, achatou como uma pequena pizza ou uma grande hóstia,
uma hóstia do Terceiro Mundo.
As crianças comeram como sempre e restou um. Não é que Sheela
observou aquele rejeitado chapati
e percebeu que tinha marcado nele o rosto de Jesus? Correu para o
padre, que confirmou. No dia seguinte, o chapati saiu com o rosto
de Nossa Senhora.
Agora 20 mil fiéis por dia passam pelo Centro de Renovação do
Retiro Espiritual para homenagear o santo chapati. E, antes que
ele acabe, como sói acontecer
com tudo o que é humano, corram ao site do chapati santo, vocês verão Sheela e a família e a frigideira com o pão manchado de
escuro com a face do Salvador.
E, se quiser aproveitar ao máximo essa experiência do pão (o
kitsch dos sites religiosos pode até
assustar, e site indiano e católico...
dá para imaginar!), corte os excessos pondo um CD como "Pange
Língua", com letra de são Tomás
de Aquino! Canta minha língua,
canta o corpo , a carne, o sangue...
ninahort@uol.com.br
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