São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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COMENTÁRIO

"Mondovino" concentra foco de idéias "terroiristas"

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os documentários estão mais vivos do que nunca. Dentro desse universo renovado, dois tipos de narrativas opostas têm batido na tela do cinema. De um lado, os documentários de tese -aqueles em que o diretor já sabe o ponto de chegada antes mesmo de começar.
Na contramão dessa tendência, estão os documentários em que o realizador vai descobrindo a real dimensão do tema abordado à medida que avança. Depois divide essa busca com o espectador. É o cinema como ato de desvendamento do mundo. "Mondovino" se aproxima dessa vertente, sem perder mordacidade ou agudez.
Não espere videoclipes de trabalhadores colhendo uvas no pôr-do-sol com jazz de elevador ao fundo, como no recente "Sideways - Entre Umas e Outras", ou metáforas fáceis sobre vinhos merlot ou pinot noir. Irreverente, cáustico e bem-humorado, "Mondovino" não é um filme sobre a fabricação do vinho, e sim sobre os efeitos da globalização do paladar.
Jonathan Nossiter, autor de "Domingo É Dia", filme de ficção premiado em Sundance em 1998, não chegou ao tema por acaso. Entre dois filmes independentes, trabalhou como sommelier em restaurantes de Nova York. Percebeu que, como os filmes norte-americanos, os vinhos contemporâneos estavam se tornando cada vez mais parecidos -perdendo sua singularidade e identidade. Resolveu investigar o tema, com uma pequena câmera digital na mão e dois amigos a tiracolo.
A turma correu meio mundo. De Bordeaux e Borgonha, na França, à região de Mendoza, na Argentina. Da Toscana e Sardenha, na Itália, a Pernambuco, no Nordeste brasileiro. Do Napa Valley californiano ao mercado de vinho de Londres. O resultado é surpreendente, rico em contradições e com personagens que são verdadeiros achados.
De um lado, os artesãos do "terroir", aqueles vinicultores que acham que um vinho deve ser a expressão da terra onde ele foi cultivado. Há neles uma ética, uma relação com o tempo, com a história e a geografia de um lugar.
Do outro, os defensores de técnicas artificiais para acelerar a maturação do vinho, tornando-o mais rapidamente consumível. Pode-se fazer um vinho com características semelhantes em qualquer lugar do mundo -esse é o credo das megacorporações que foram estabelecidas na Califórnia, encabeçadas pelo clã dos Mondavi.
"Há dois tipos de vinho, os vinhos-puta e os outros. Os vinhos-puta são todos iguais: fáceis de beber, mas logo esquecíveis", diz Hubert de Montille, um dos personagens principais do filme, vinicultor puro e duro da região de Borgonha.
Invertendo o ângulo, "Mondovino" nos apresenta ao homem que vem executando essa uniformização do gosto: o francês Michel Rolland, enólogo de dezenas de empresas vinícolas no Velho e no Novo Mundo. Acompanhado pela câmera de Nossiter, Rolland desfia o mesmo mantra para diferentes clientes: "É necessário microoxigenar o vinho". A microoxigenação, percebe-se logo, é uma espécie de botox etílico.
"Mondovino" mostra que esse processo de "mcdonaldização" do vinho começa no início dos anos 80. Sintomaticamente, na mesma época em que a trinca Reagan-Thatcher-Wojtyla juntou forças para implodir o bloco soviético, selando a vitória da economia globalizada e de uma nova forma de fundamentalismo, o do mercado. É nessa época, também, que surge um ator fundamental no mundo do vinho: o hoje célebre crítico norte-americano Robert Parker, um homem com o paladar afinado com os vinhos do Novo Mundo e amigo íntimo de Rolland. (Parker e Rolland são, aliás, os personagens de "Mondovino" que ficaram mais enfurecidos com o filme.)
Se se limitasse a opor o bem (os pequenos vinicultores) contra o mal (as grandes empresas vinícolas), "Mondovino" seria apenas mais um documentário "agit-prop". O que faz o filme ultrapassar esse limite é a ambigüidade e a complexidade dos seus personagens. O mesmo vinicultor que ataca "os vinhos-puta" se revela um pai incapaz de fazer concessões aos filhos. O pequeno agricultor que combate Mondavi tem motivos escusos para fazê-lo.
A câmera nervosa não busca só os atores principais mas também o que normalmente fica fora de quadro. Os imigrantes que fazem os vinhedos californianos funcionarem. A foto de Reagan na parede de Parker. E seu buldogue, que solta gases sem parar.
É a comédia humana que toma corpo, entre um gole e outro. E, mesmo que a sensação de que algo está se perdendo permeie o filme, Nossiter nos mostra que o antigo mundo do vinho era parcialmente dominado por aristocratas fascistas e que poucos tinham acesso a suas benesses. "Mondovino" pode não agradar a todos. Enquanto jornais de esquerda como o "Libération" saudaram o filme com o título "Mondovino, Champanhe!", sites americanos acusaram-no de "terrorista do vinho" -e não "terroirista".
A câmera na mão pode fazer com que os mais suscetíveis peçam um Engov ao final da sessão. Mas uma coisa fica clara: com "Mondovino", Nossiter nos oferece um filme luminoso e inteligente sobre os efeitos da globalização. É, talvez, um dos três mais importantes filmes políticos dos últimos anos, com o excelente "A Melhor Juventude", de Marco Tulio Giordana, e o documentário "Ao Oeste dos Trilhos", de Wang Bing. Vale a pena se embriagar.


Walter Salles é diretor de "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil", entre outros

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