|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
"Mondovino" concentra foco de idéias "terroiristas"
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os documentários estão mais
vivos do que nunca. Dentro
desse universo renovado, dois tipos de narrativas opostas têm batido na tela do cinema. De um lado, os documentários de tese
-aqueles em que o diretor já sabe o ponto de chegada antes mesmo de começar.
Na contramão dessa tendência,
estão os documentários em que o
realizador vai descobrindo a real
dimensão do tema abordado à
medida que avança. Depois divide essa busca com o espectador. É
o cinema como ato de desvendamento do mundo. "Mondovino"
se aproxima dessa vertente, sem
perder mordacidade ou agudez.
Não espere videoclipes de trabalhadores colhendo uvas no
pôr-do-sol com jazz de elevador
ao fundo, como no recente "Sideways - Entre Umas e Outras", ou
metáforas fáceis sobre vinhos
merlot ou pinot noir. Irreverente,
cáustico e bem-humorado,
"Mondovino" não é um filme sobre a fabricação do vinho, e sim
sobre os efeitos da globalização
do paladar.
Jonathan Nossiter, autor de
"Domingo É Dia", filme de ficção
premiado em Sundance em 1998,
não chegou ao tema por acaso.
Entre dois filmes independentes,
trabalhou como sommelier em
restaurantes de Nova York. Percebeu que, como os filmes norte-americanos, os vinhos contemporâneos estavam se tornando cada
vez mais parecidos -perdendo
sua singularidade e identidade.
Resolveu investigar o tema, com
uma pequena câmera digital na
mão e dois amigos a tiracolo.
A turma correu meio mundo.
De Bordeaux e Borgonha, na
França, à região de Mendoza, na
Argentina. Da Toscana e Sardenha, na Itália, a Pernambuco, no
Nordeste brasileiro. Do Napa Valley californiano ao mercado de
vinho de Londres. O resultado é
surpreendente, rico em contradições e com personagens que são
verdadeiros achados.
De um lado, os artesãos do "terroir", aqueles vinicultores que
acham que um vinho deve ser a
expressão da terra onde ele foi
cultivado. Há neles uma ética,
uma relação com o tempo, com a
história e a geografia de um lugar.
Do outro, os defensores de técnicas artificiais para acelerar a
maturação do vinho, tornando-o
mais rapidamente consumível.
Pode-se fazer um vinho com características semelhantes em
qualquer lugar do mundo -esse
é o credo das megacorporações
que foram estabelecidas na Califórnia, encabeçadas pelo clã dos
Mondavi.
"Há dois tipos de vinho, os vinhos-puta e os outros. Os vinhos-puta são todos iguais: fáceis de beber, mas logo esquecíveis", diz
Hubert de Montille, um dos personagens principais do filme, vinicultor puro e duro da região de
Borgonha.
Invertendo o ângulo, "Mondovino" nos apresenta ao homem
que vem executando essa uniformização do gosto: o francês Michel Rolland, enólogo de dezenas
de empresas vinícolas no Velho e
no Novo Mundo. Acompanhado
pela câmera de Nossiter, Rolland
desfia o mesmo mantra para diferentes clientes: "É necessário microoxigenar o vinho". A microoxigenação, percebe-se logo, é uma
espécie de botox etílico.
"Mondovino" mostra que esse
processo de "mcdonaldização"
do vinho começa no início dos
anos 80. Sintomaticamente, na
mesma época em que a trinca
Reagan-Thatcher-Wojtyla juntou
forças para implodir o bloco soviético, selando a vitória da economia globalizada e de uma nova
forma de fundamentalismo, o do
mercado. É nessa época, também,
que surge um ator fundamental
no mundo do vinho: o hoje célebre crítico norte-americano Robert Parker, um homem com o
paladar afinado com os vinhos do
Novo Mundo e amigo íntimo de
Rolland. (Parker e Rolland são,
aliás, os personagens de "Mondovino" que ficaram mais enfurecidos com o filme.)
Se se limitasse a opor o bem (os
pequenos vinicultores) contra o
mal (as grandes empresas vinícolas), "Mondovino" seria apenas
mais um documentário "agit-prop". O que faz o filme ultrapassar esse limite é a ambigüidade e a
complexidade dos seus personagens. O mesmo vinicultor que
ataca "os vinhos-puta" se revela
um pai incapaz de fazer concessões aos filhos. O pequeno agricultor que combate Mondavi tem
motivos escusos para fazê-lo.
A câmera nervosa não busca só
os atores principais mas também
o que normalmente fica fora de
quadro. Os imigrantes que fazem
os vinhedos californianos funcionarem. A foto de Reagan na parede de Parker. E seu buldogue, que
solta gases sem parar.
É a comédia humana que toma
corpo, entre um gole e outro. E,
mesmo que a sensação de que algo está se perdendo permeie o filme, Nossiter nos mostra que o antigo mundo do vinho era parcialmente dominado por aristocratas
fascistas e que poucos tinham
acesso a suas benesses. "Mondovino" pode não agradar a todos.
Enquanto jornais de esquerda como o "Libération" saudaram o filme com o título "Mondovino,
Champanhe!", sites americanos
acusaram-no de "terrorista do vinho" -e não "terroirista".
A câmera na mão pode fazer
com que os mais suscetíveis peçam um Engov ao final da sessão.
Mas uma coisa fica clara: com
"Mondovino", Nossiter nos oferece um filme luminoso e inteligente sobre os efeitos da globalização. É, talvez, um dos três mais
importantes filmes políticos dos
últimos anos, com o excelente "A
Melhor Juventude", de Marco Tulio Giordana, e o documentário
"Ao Oeste dos Trilhos", de Wang
Bing. Vale a pena se embriagar.
Walter Salles é diretor de "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil", entre outros
Texto Anterior: Cinema: Diretor passa a limpo a máfia do vinho Próximo Texto: Feira em SP oferece maratona de degustações de tintos e brancos Índice
|