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FERREIRA GULLAR
Desse pão não comerei
Sem a presença do negro na
formação do Brasil, este seria
outro país, este seria outro povo,
esta seria outra cultura, certamente menos rica.
Nem dá para imaginar. Pode-se
pensar no Brasil sem o barroco de
Aleijadinho, sem a genialidade de
Machado de Assis, sem a pungente e transfiguradora poesia de
Cruz e Sousa? Certamente não.
Sem eles, não seria o Brasil este
Brasil; seria outro, menos doído e
menos comovido.
O Brasil não nos esperou para
nascer. Não esperou que se redigisse a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Desde possivelmente 1530, quando de fato começou a colonização, deu-se início à alquimia étnica e cultural
que o formaria. Índios foram
preados, escravizados ou vendidos; negros, trazidos como escravos em porões de navios. Era um
tempo duro aquele, que exigia
audácia, ambição, temor do Inferno, esperança no Paraíso -e
crueldade em nome de tudo isso.
Mas o Brasil veio se fazendo.
Um país não se faz como um edifício, a partir de um projeto, só
com gente íntegra e respeitosa dos
valores humanos. O nosso foi feito
com gente decidida e ambiciosa,
mas também com degredados e
aventureiros -"mistura de seda
e péssimo", para parafrasear Carlos Drummond de Andrade, que
chegou bem mais tarde, descendente de húngaros, que vieram
parar na cidade mineira de Itabira.
Nascemos dos canaviais de Pernambuco, transformados em açúcar (e agora em combustível de
automóveis); nascemos das plantações de algodão do Maranhão,
regadas com sangue africano;
nascemos das minas de ouro de
Vila Rica, dos pampas com seus
rebanhos, nascemos do café, do
cacau, da borracha amazônica...
Nascemos dos batuques da senzala, das primeiras canções nos primeiros pianos nos casarões coloniais, donde surgiriam Villa-Lobos, Pixinguinha, Tom Jobim,
Martinho da Vila...
Nascemos das Missões, onde os
índios catequizados trocaram os
rituais antropófagos pela missa e
pela crença num Deus cristão. E
que foram um dia massacrados
por preadores. Dupla lição que levou o rei português a permitir que
os índios se defendessem com bacamartes e obrigou os bandeirantes a se tornarem plantadores de
cidades. A história, como se vê, escreve certo por linhas tortas.
E escreve errado também. Negros africanos capturavam outros
negros de tribos inimigas, os escravizavam e os vendiam aos
árabes, aos portugueses e aos ingleses. Era um negócio. Um negócio sujo, mas a verdade é que, sem
o braço escravo, nossa história teria sido outra. Se, sem ele, Portugal tivesse desistido de colonizar o
Brasil, outro colonizador o teria
feito, usando escravo também.
Mas não foi assim. Os portugueses -que não eram antiescravocratas como nós hoje- compraram os negros africanos e os trouxeram para plantar cana e moê-la. E foi desse modo que -com
açúcar e desafeto, com açúcar e
com afeto, com açúcar e com chibata, com açúcar e com tesão-
começou a civilização brasileira,
em Pernambuco.
A escravidão, que é uma ignomínia, foi um fenômeno não racista, mas econômico. Impossível
crer que uma elite africana, negra, alimentasse preconceito de
cor contra outros negros africanos. Não obstante, foi ela que os
aprisionou e os vendeu como escravos. Além do mais, a escravidão não foi o único fato indigno
em nossa história: não fuzilaram
frei Caneca? Não enforcaram Bequimão e Tiradentes? Não assassinaram Marighela, Massena,
Mário Alves? E os que têm sido assinados pelo latifúndio, pela falta
de hospitais e de saneamento? A
quem pedir perdão por esses crimes?
Não tem sentido pedir perdão
aos africanos pela escravização
de seus irmãos negros que eles foram os primeiros a pôr em prática. Não era o racismo que estava
na origem da escravização no caso brasileiro, como não estava no
caso dos brancos espartanos escravizando brancos atenienses ou
no dos romanos escravizando
gregos ou no dos astecas escravizando astecas, o que não significa
que existisse e não exista racismo.
A escravidão é uma ignomínia
porque submete um homem a outro e o despoja da liberdade e de
todos os demais direitos inerentes
à condição humana. No Museu
Histórico Nacional, li certo dia o
testamento em que um fazendeiro enumerava suas propriedades.
Dizia mais ou menos o seguinte:
"Bens imóveis: uma fazenda no
município tal, uma chácara e
uma casa na rua tal número tal.
Bens de fôlego: 20 cabeças de gado, três cabras e nove escravos".
Após sair do museu, cheguei à
praça Quinze, onde vi passar um
jovem negro, alto, de blusão colorido, calças jeans e tênis da moda,
de mãos dadas com um garota
branca, certamente sua namorada. Comovi-me só de pensar: "Ele
não é mais propriedade de ninguém, nasceu livre num país democrático". Pena que ainda subsistam preconceitos.
Não, não pedirei perdão aos
africanos pela escravidão que alguns deles iniciaram (e que já estão mortos há séculos!). Tampouco se trata de afirmar que "somos
todos culpados", pois isso é hipocrisia. O que importa não é execrar defuntos, alimentar ressentimentos nem fomentar ódios raciais. Importa nos darmos todos
as mãos, nos abraçarmos calorosamente e nos comprometermos a
construir juntos um país fraterno.
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