São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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FERREIRA GULLAR

Desse pão não comerei

Sem a presença do negro na formação do Brasil, este seria outro país, este seria outro povo, esta seria outra cultura, certamente menos rica.
Nem dá para imaginar. Pode-se pensar no Brasil sem o barroco de Aleijadinho, sem a genialidade de Machado de Assis, sem a pungente e transfiguradora poesia de Cruz e Sousa? Certamente não. Sem eles, não seria o Brasil este Brasil; seria outro, menos doído e menos comovido.
O Brasil não nos esperou para nascer. Não esperou que se redigisse a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desde possivelmente 1530, quando de fato começou a colonização, deu-se início à alquimia étnica e cultural que o formaria. Índios foram preados, escravizados ou vendidos; negros, trazidos como escravos em porões de navios. Era um tempo duro aquele, que exigia audácia, ambição, temor do Inferno, esperança no Paraíso -e crueldade em nome de tudo isso.
Mas o Brasil veio se fazendo. Um país não se faz como um edifício, a partir de um projeto, só com gente íntegra e respeitosa dos valores humanos. O nosso foi feito com gente decidida e ambiciosa, mas também com degredados e aventureiros -"mistura de seda e péssimo", para parafrasear Carlos Drummond de Andrade, que chegou bem mais tarde, descendente de húngaros, que vieram parar na cidade mineira de Itabira.
Nascemos dos canaviais de Pernambuco, transformados em açúcar (e agora em combustível de automóveis); nascemos das plantações de algodão do Maranhão, regadas com sangue africano; nascemos das minas de ouro de Vila Rica, dos pampas com seus rebanhos, nascemos do café, do cacau, da borracha amazônica... Nascemos dos batuques da senzala, das primeiras canções nos primeiros pianos nos casarões coloniais, donde surgiriam Villa-Lobos, Pixinguinha, Tom Jobim, Martinho da Vila...
Nascemos das Missões, onde os índios catequizados trocaram os rituais antropófagos pela missa e pela crença num Deus cristão. E que foram um dia massacrados por preadores. Dupla lição que levou o rei português a permitir que os índios se defendessem com bacamartes e obrigou os bandeirantes a se tornarem plantadores de cidades. A história, como se vê, escreve certo por linhas tortas.
E escreve errado também. Negros africanos capturavam outros negros de tribos inimigas, os escravizavam e os vendiam aos árabes, aos portugueses e aos ingleses. Era um negócio. Um negócio sujo, mas a verdade é que, sem o braço escravo, nossa história teria sido outra. Se, sem ele, Portugal tivesse desistido de colonizar o Brasil, outro colonizador o teria feito, usando escravo também. Mas não foi assim. Os portugueses -que não eram antiescravocratas como nós hoje- compraram os negros africanos e os trouxeram para plantar cana e moê-la. E foi desse modo que -com açúcar e desafeto, com açúcar e com afeto, com açúcar e com chibata, com açúcar e com tesão- começou a civilização brasileira, em Pernambuco.
A escravidão, que é uma ignomínia, foi um fenômeno não racista, mas econômico. Impossível crer que uma elite africana, negra, alimentasse preconceito de cor contra outros negros africanos. Não obstante, foi ela que os aprisionou e os vendeu como escravos. Além do mais, a escravidão não foi o único fato indigno em nossa história: não fuzilaram frei Caneca? Não enforcaram Bequimão e Tiradentes? Não assassinaram Marighela, Massena, Mário Alves? E os que têm sido assinados pelo latifúndio, pela falta de hospitais e de saneamento? A quem pedir perdão por esses crimes?
Não tem sentido pedir perdão aos africanos pela escravização de seus irmãos negros que eles foram os primeiros a pôr em prática. Não era o racismo que estava na origem da escravização no caso brasileiro, como não estava no caso dos brancos espartanos escravizando brancos atenienses ou no dos romanos escravizando gregos ou no dos astecas escravizando astecas, o que não significa que existisse e não exista racismo.
A escravidão é uma ignomínia porque submete um homem a outro e o despoja da liberdade e de todos os demais direitos inerentes à condição humana. No Museu Histórico Nacional, li certo dia o testamento em que um fazendeiro enumerava suas propriedades. Dizia mais ou menos o seguinte: "Bens imóveis: uma fazenda no município tal, uma chácara e uma casa na rua tal número tal. Bens de fôlego: 20 cabeças de gado, três cabras e nove escravos".
Após sair do museu, cheguei à praça Quinze, onde vi passar um jovem negro, alto, de blusão colorido, calças jeans e tênis da moda, de mãos dadas com um garota branca, certamente sua namorada. Comovi-me só de pensar: "Ele não é mais propriedade de ninguém, nasceu livre num país democrático". Pena que ainda subsistam preconceitos.
Não, não pedirei perdão aos africanos pela escravidão que alguns deles iniciaram (e que já estão mortos há séculos!). Tampouco se trata de afirmar que "somos todos culpados", pois isso é hipocrisia. O que importa não é execrar defuntos, alimentar ressentimentos nem fomentar ódios raciais. Importa nos darmos todos as mãos, nos abraçarmos calorosamente e nos comprometermos a construir juntos um país fraterno.

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