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Crítica/"As Centenárias"
Excepcional, peça brinca com a morte
Texto de Newton Moreno traz Marieta Severo e Andréa Beltrão no papel de carpideiras e costura histórias complexas apenas com diálogo
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
A
morte é parceira da cena desde eras remotas
e, no século 20, os criadores mais relevantes foram os
que melhor souberam jogar
com ela. O espetáculo "As Centenárias" brinca despudoradamente com a mais temida e alcança não só o coração do público como uma qualidade artística excepcional.
O texto criado por Newton
Moreno parte de uma pesquisa
com lendas da cultura popular
nordestina em torno dos velórios. As carpideiras, já presentes em textos seus anteriores,
são agora promovidas à condição de protagonistas. O dramaturgo costura em uma trama
coesa uma série de casos isolados, sem precisar de um narrador explícito. Esse prodígio de
contar histórias complexas
com o puro diálogo só foi possível porque as cenas foram escritas sob medida para duas
atrizes extraordinárias, que
carregam um caleidoscópio de
personagens em constante troca verbal e dispondo seu desempenho a favor da narrativa.
Para a dramaturgia se potencializar era necessário um conceito inventivo de encenação e
Aderbal Freire-Filho colaborou decisivamente nesse sentido. Imagina-se que é dele a
ideia que norteia e dá grandeza
ao espetáculo de propor um
verdadeiro circo da morte, em
que os aspectos bufos, temperados pelo patético das perdas
lancinantes, atingem um patamar raro para as emoções
cômicas -descoladas do trágico, mas belas pela clareza da
formalização.
Texto e direção não se destacariam não fosse a contribuição
decisiva de Marieta Severo e
Andréa Beltrão. Confirmando
o êxito da química de contracenas anteriores, a dupla encanta
pela sincronia dos ritmos e das
intensidades interpretativas.
Severo é principalmente a
carpideira Socorro, revelada
tanto nos dissabores da juventude como no vigor espantoso
da condição centenária, mas
encarna outros tantos personagens, com notável energia.
Andréa Beltrão é Zaninha,
apresentada desde menina,
com o fascínio pela arte de carpir defunto, passando pela condição materna a liberá-la ao ofício, até a velhice, em que impressiona pelo virtuosismo nos
mínimos traços de sua composição. Isso sem falar dos vários
personagens secundários que
abriga a serviço das histórias.
No caso de Beltrão, é possível
arriscar que se trate de um dos
trabalhos mais fabulosos de sua
brilhante carreira.
O ator Sávio Moll, que manipula bonecos e máscaras e encarna a própria morte, não
acompanha a excelência das
atrizes, mas tampouco a compromete, colaborando bastante
no fluxo da ação dramática.
O cenário, como um mosaico
de bonecos de pano, os figurinos e adereços, a música e a iluminação combinam-se harmoniosa e funcionalmente na justeza do conjunto da obra.
As "Centenárias" oferece um
ótimo exemplo de como a comédia popular pode conciliar-se com a grande arte e ser
transformadora. Demonstra
também a vitalidade que o teatro obtém quando dramaturgo,
encenador e intérpretes ardem
em uníssono no fogo da paixão
criativa, confirmando a alquimia milenar de transmutação
da morte em brinquedo.
AS CENTENÁRIAS
Quando: sex., às 21h30; sáb., às 21h;
dom., às 17h. Até 28/6
Onde: teatro Raul Cortez - Fecomércio
(r. Dr. Plínio Barreto, 285, tel. 0/xx/
11/3188-4141)
Quanto: R$ 80 a R$ 90
Classificação indicativa: 14 anos
Avaliação: ótimo
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