São Paulo, sexta-feira, 01 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"As Centenárias"

Excepcional, peça brinca com a morte

Texto de Newton Moreno traz Marieta Severo e Andréa Beltrão no papel de carpideiras e costura histórias complexas apenas com diálogo

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

A morte é parceira da cena desde eras remotas e, no século 20, os criadores mais relevantes foram os que melhor souberam jogar com ela. O espetáculo "As Centenárias" brinca despudoradamente com a mais temida e alcança não só o coração do público como uma qualidade artística excepcional.
O texto criado por Newton Moreno parte de uma pesquisa com lendas da cultura popular nordestina em torno dos velórios. As carpideiras, já presentes em textos seus anteriores, são agora promovidas à condição de protagonistas. O dramaturgo costura em uma trama coesa uma série de casos isolados, sem precisar de um narrador explícito. Esse prodígio de contar histórias complexas com o puro diálogo só foi possível porque as cenas foram escritas sob medida para duas atrizes extraordinárias, que carregam um caleidoscópio de personagens em constante troca verbal e dispondo seu desempenho a favor da narrativa.
Para a dramaturgia se potencializar era necessário um conceito inventivo de encenação e Aderbal Freire-Filho colaborou decisivamente nesse sentido. Imagina-se que é dele a ideia que norteia e dá grandeza ao espetáculo de propor um verdadeiro circo da morte, em que os aspectos bufos, temperados pelo patético das perdas lancinantes, atingem um patamar raro para as emoções cômicas -descoladas do trágico, mas belas pela clareza da formalização.
Texto e direção não se destacariam não fosse a contribuição decisiva de Marieta Severo e Andréa Beltrão. Confirmando o êxito da química de contracenas anteriores, a dupla encanta pela sincronia dos ritmos e das intensidades interpretativas.
Severo é principalmente a carpideira Socorro, revelada tanto nos dissabores da juventude como no vigor espantoso da condição centenária, mas encarna outros tantos personagens, com notável energia.
Andréa Beltrão é Zaninha, apresentada desde menina, com o fascínio pela arte de carpir defunto, passando pela condição materna a liberá-la ao ofício, até a velhice, em que impressiona pelo virtuosismo nos mínimos traços de sua composição. Isso sem falar dos vários personagens secundários que abriga a serviço das histórias.
No caso de Beltrão, é possível arriscar que se trate de um dos trabalhos mais fabulosos de sua brilhante carreira.
O ator Sávio Moll, que manipula bonecos e máscaras e encarna a própria morte, não acompanha a excelência das atrizes, mas tampouco a compromete, colaborando bastante no fluxo da ação dramática.
O cenário, como um mosaico de bonecos de pano, os figurinos e adereços, a música e a iluminação combinam-se harmoniosa e funcionalmente na justeza do conjunto da obra.
As "Centenárias" oferece um ótimo exemplo de como a comédia popular pode conciliar-se com a grande arte e ser transformadora. Demonstra também a vitalidade que o teatro obtém quando dramaturgo, encenador e intérpretes ardem em uníssono no fogo da paixão criativa, confirmando a alquimia milenar de transmutação da morte em brinquedo.


AS CENTENÁRIAS

Quando: sex., às 21h30; sáb., às 21h; dom., às 17h. Até 28/6
Onde: teatro Raul Cortez - Fecomércio (r. Dr. Plínio Barreto, 285, tel. 0/xx/ 11/3188-4141)
Quanto: R$ 80 a R$ 90
Classificação indicativa: 14 anos
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Carlos Heitor Cony: O anão e o príncipe
Próximo Texto: Aderbal vai dirigir versão de "Moby Dick"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.