São Paulo, Sábado, 01 de Maio de 1999
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Don DeLillo destampa subterrâneos do homem


"Não acho meus livros paranóicos", diz à Folha um dos mais importantes escritores americanos, que tem seu "Submundo" lançado agora no Brasil


BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

"Submundo", o último livro de Don DeLillo, 62, é uma metáfora com vários sentidos. Diz respeito ao subterrâneo onde as sociedades pós-industriais enterram o lixo atômico e os resíduos tóxicos da promessa perdida de sua glória (um dos protagonistas é especialista no tratamento desse material). Mas também representa uma espécie de Hades em que se converteu o mundo sem mitos, devastado pelas drogas e pela Aids.
Com lançamento previsto para 10 de maio, "Submundo" conta 50 anos da história americana, da Guerra Fria ao desmembramento da União Soviética, num imenso painel composto por personagens reais e ficcionais, que vão de uma velha artista plástica que faz uma monumental instalação no deserto com antigos aviões B-52 da Guerra do Vietnã a um "serial killer" que mata motoristas no trânsito.
Don DeLillo falou à Folha, por telefone, de Nova York. Hoje, está escrevendo um romance "relativamente curto", se comparado a "Submundo". "Antes da história e da política, existe a linguagem. E é disso que eu falo quando digo que sou um escritor", diz.

Folha - Há muito de paranóia nos seus livros. De onde vem isso?
Don DeLillo -
Vem direto da cultura a nossa volta. Não acho que meus livros sejam paranóicos, mas receptivos ao que se passa na própria cultura. Tudo começou com o assassinato do presidente Kennedy. Toda aquela suspeita e desconfiança, que se alastrou por muito tempo, sobre o que o governo nos dizia ou escondia. Há um personagem em "Libra" que diz que "a história é a soma total das coisas que eles não estão nos contando". A Guerra Fria, é claro, criou uma espécie de paranóia metafísica, particularmente entre os americanos conservadores. E agora a paranóia está em grande atividade na Internet.
Folha - Você acha que a paranóia chega a definir uma escola na literatura americana, com você, Thomas Pynchon, Paul Auster?
DeLillo -
É uma corrente que vai e vem na literatura atual. Não dá para classificar um grupo de livros ou escritores. E não se restringe à literatura. Está no cinema, na TV. É apenas uma parte da cultura. Não acho que "Submundo" esteja tão mergulhado na paranóia. É apenas um elemento, entre outros. Você não pode escrever um romance sobre os EUA da Guerra Fria sem um tanto de paranóia.
Folha - Você já falou das dificuldades que o romance, como gênero, enfrenta hoje, mas "Submundo" parece ser a sua tentativa de escrever "o grande romance americano". Não é um paradoxo?
DeLillo -
Quando um romancista contemporâneo escreve um romance longo, complexo e ambicioso, está expondo sua oposição às demandas do mercado. Dizem que a ficção mais ambiciosa foi esmagada pelo cinema, pela televisão. Mas o romance tem uma forma de se restaurar. É o que parece estar acontecendo agora. Nos últimos anos, foram publicados, só nos EUA, vários livros ambiciosos e longos. Os escritores sérios sempre seguirão o seu próprio caminho, em vez de se submeter às regras.
Folha - Os escritores americanos em geral se interessam muito pouco pela literatura estrangeira. Esse fechamento não pode resultar num esgotamento criativo?
DeLillo -
Não tenho tanta familiaridade com o que os americanos estão fazendo. Os Estados Unidos sempre tiveram um sentimento de isolamento em relação a si mesmos, que não diminuiu com os anos. É muito difícil para escritores estrangeiros conseguirem publicar neste país ou serem traduzidos. Há uma certa auto-absorção e autofascinação entre os americanos. Há menos livros de autores estrangeiros traduzidos hoje do que na minha juventude.
Folha - Seus livros têm um fascínio especial pelas figuras da mídia, e pela cultura pop. Por quê?
DeLillo -
A ficção sempre vai explorar os cantos anônimos da experiência humana. Mas nas últimas décadas o sentimento da presença pública se tornou mais forte, o sentimento da fama e da celebridade. São elementos importantes da nossa cultura. Uso figuras reais na minha ficção para aprofundar a textura do trabalho. Essas figuras carregam uma aura poderosa, seja Lee Harvey Oswald ou Lenny Bruce, há um tanto do poder da história que fica grudado nessas pessoas. O sentimento do acontecimento público parece ter se intensificado. Num livro do tamanho e complexidade de "Submundo", tinha de haver esse sentimento da vida pública que nos pressiona com tanta insistência.
Folha - Você cresceu no Bronx, assim como o protagonista de "Submundo". O que é autobiográfico nesse livro?
DeLillo -
Conheço aquela parte do Bronx muito bem, mas não há nada estritamente autobiográfico. Escrever sobre aquele lugar liberou muitas lembranças que estavam enterradas. Escrever, no final das contas, é apenas uma forma concentrada de pensamento. Há coisas da sua memória que nunca viriam à tona se você sentasse numa cadeira e tentasse se lembrar, mas que afloram na escrita.
Folha - Você já disse que nunca se emociona com o que está escrevendo, enquanto está escrevendo. Sua emoção é calculista?
DeLillo -
Sempre tem de haver um certo grau de calculismo. O poder emocional de um momento ou personagem é parte de um mecanismo retardado que só me atinge quando releio a passagem e passo a refletir sobre ela. Aí se torna mais profundo. Enquanto escrevo, estou basicamente criando palavras, frases e parágrafos. Não é fácil decifrar o momento da criação. No fundo, você está lutando com a linguagem. Primeiro você tem de ficar emocionado pela linguagem.


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