São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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"CORES PROIBIDAS"

Obra não deve ser encarada como um Mishima de menor qualidade

LUIZ COSTA PEREIRA JÚNIOR
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Virou até clichê da crítica especializada tachar "Cores Proibidas" como obra de segunda linha no arsenal literário de Yukio Mishima.
Criado para ser lido em jornal, em episódios editados na imprensa entre 1951 e 53, "Cores Proibidas" raras vezes foi encarado como é: um folhetim.
A história é episódica e manipulativa. Escritor consagrado, Shunsuke Hinoki tem 65 anos, é feio de doer e algo contido, mas até o ponto em que transpira na própria misoginia uma raiva intestina das mulheres, mal-disfarçada forma de sublimar as diversas decepções que seus sucessivos casamentos lhe deram.
O início do livro o pega, no entanto, desperto numa paixão platônica pela pós-adolescente Yasuko. A relação dos dois limita-se apenas à admiração mútua. Ela um dia desaparece, numa viagem. Tomado de súbito impulso, Shunsuke a procura. Surpreende-se ao encontrá-la acompanhada por Yuichi Minami, um adônis nipônico que o embaraça com sua beleza.
Shunsuke possui o que Mishima descreve como o "péssimo hábito" de fazer a associação da beleza à felicidade, e o livro faz com que o fascínio surgido pelo rapaz ganhe o primeiro plano. O escritor o manipulará durante todo o livro até se descobrir por fim apaixonado por ele, uma percepção gradativa que chega no limite do insuportável.
De forma blasé e improvável, de uma ingenuidade displicente, Yuichi revela sua homossexualidade ao escritor, para ele então um solene desconhecido. É apenas um dos calos no cenário que compõe "Cores Proibidas": do nada, o herói herda 10 milhões de ienes e as tensões se dissolvem. Fim do livro.

Sacrifício do tradicional
Esmaltado, de uma elegância até mecânica, o romance é cheio das concessões xaroposas que tornam uma ficção absorvente mesmo quando limitada.
O texto deve ser encarado, no entanto, como mais do que uma obra menor.
Mishima executa um projeto literário em "Cores Proibidas" que demanda habilidade: um dos desafios do livro é mostrar como age um escritor que fez fama por sacrificar os "elementos novelísticos tradicionais".
Todas as intempéries que constroem uma personalidade pouco convencional, em profunda coerência com o estilo paratático de suas obras, é contada por Mishima com uma prosa absolutamente fiel aos "elementos novelísticos tradicionais" que seu personagem nega.
A obra é o resultado da discrepância entre esse estilo comportado de narrar e o estilo nada comportado do escritor e da vida que leva. Shunsuke chega a ser leviano em sua moralidade imperturbavelmente reta. O estilo de Mishima -o mais forte ponto de discórdia sobre a qualidade do livro- chega então a ser frio e distante.
Os personagens são construídos como facetas díspares e complementares: o velho e o novo, o belo e o feio, a asfixia e o relaxamento. É como se lêssemos um espelho do próprio autor. Mishima foi um homem dividido. A ocidentalização japonesa no período do pós-guerra o consumiu como se fosse droga: ao mesmo tempo em que causava ferimentos em seu espírito, também invadia seu sangue, sem volta.
Não por acaso, é considerado o mais ocidental dos escritores japoneses. Numa personalidade que acomodou uma polifonia de disparidades: um cosmopolita amante da tradição, um pai conservador e homossexual convicto, um narcisista frio, um nacionalista que se negou a entrar nos Exércitos imperiais.
Na manhã do dia em que se matou, aos 45 anos, Yukio Mishima caminhou calmamente até a sua editora para entregar o último capítulo da tetralogia "O Mar da Fertilidade". Era novembro de 1970. O mar, o breu frio das profundidades oceânicas, lhe serviu talvez como última metáfora e epitáfio.


Cores Proibidas
Kinjiki
  
Autor: Yukio Mishima
Tradutor: Jefferson José Teixeira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (576 págs.)




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