São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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MEMÓRIA

Mário Lago, parceiro de Ataulfo Alves e Custódio Mesquita na composição, deixa legado de pequenos tesouros apagados

A delicadeza perdida da música popular

Américo Vermelho - 28.jun.2001/Folha Imagem
Mário Lago, morto no Rio, anteontem, em decorrência de efisema pulmonar


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Mesmo sem ter tido carreira extensa ou militante no seio da música popular, Mário Lago, 90, foi e continuará sendo compositor-símbolo de uma era que, infelizmente, morreu bem antes dele. Lago foi um dos galantes rapazes da dita época de ouro da música brasileira, quando samba, elegância e vozeirão andavam alinhados tal qual chapéu de palha, terno branco e gravata vermelha.
Nunca se atreveu a ser cantor, tarefa que deixou entregue a amigos como Orlando Silva, Francisco Alves, Mario Reis etc. etc. etc.. Artista múltiplo, atuou em música como compositor, mesmo assim, nunca solitariamente.
Para concluir a arte de compor uma canção, sempre necessitou de parceria e teve no rol de comparsas musicais figuras ilustres como Ataulfo Alves, Benedito Lacerda, Custódio Mesquita, Roberto Martins, Chocolate, Roberto Roberti -todos fazedores de modos musicais que já não existem.
Talvez expressão máxima desses modos seja a suave canção "Nada Além", composta com o refinado e subestimado Custódio Mesquita, em 1938 (Lago já compunha desde 1935), para virar clássico na voz de Orlando Silva. Cândida, amorosa e sofredora, se ouvida hoje, só pode suscitar a dúvida também sofredora: onde foi parar nossa perdida delicadeza musical?
Na música Mário Lago era gentil por princípio, mas nem é que fosse somente assim. Tanto é que, também se ouvida com as referências de hoje, sua música mais conhecida assusta pela indelicadeza misógina -"Ai, que Saudades da Amélia" (42, com Ataulfo Alves) também é de um tempo machista que já se foi, e desta vez não há razão para lamentar.
Embora o tema da companheira submissa "que era mulher de verdade" traga à memória esse Lago mais afoito, o outro, mais meigo, é que compareceu mais vezes à MPB.
Desse ficarão na memória pequenos tesouros apagados como a cristã "Atire a Primeira Pedra" (44, também com Ataulfo), a carnavalesca "Aurora" (40, com Roberto Roberti, imortalizada por Carmen Miranda), a dramática "Número Um" (39, com Benedito Lacerda).
Em qualquer desses exemplos, e mesmo em "Ai, que Saudades da Amélia", o que pula à frente na memória dos anos dourados de Mário Lago é que, mesmo marginalizado, o samba (ou seja, a própria música popular brasileira) prestava-se, em seu auge, a exprimir a nobreza e a elegância de todo um povo, de todo um país também marginalizado.
Comparem-se aquelas canções com as trilhas sonoras dos atuais programas dominicais de TV. O que se verá é que, em quase um século de existência (e em especial nas últimas duas décadas), Mário Lago teve de assistir à grossa e feia brutalização da música brasileira, do Brasil. Ficamos nós por aqui.



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