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DRAUZIO VARELLA
A fonte maligna da juventude
As células malignas, em
sua loucura irresponsável,
guardam o segredo que mais gostaríamos de descobrir.
Na célula-ovo que deu origem a
cada pessoa, reuniram-se os 30
mil genes característicos da espécie humana: metade chegou com
o espermatozóide, e a outra os
aguardava no óvulo da mãe. Nele, os genes maternos formaram
pares com os paternos, ordenadamente, para codificar, uma por
uma, todas as características responsáveis pelo que somos.
Ao se preparar para a primeira
divisão da vida, essa célula primordial tratou de copiar os 30 mil
pares de genes para dividi-los em
dois pacotes iguais: um para cada
célula-filha. Estas, sucessivamente, fizeram novas cópias dos 30
mil genes e se dividiram quatro,
oito, 16, 32 vezes e, assim, até chegar aos 70 bilhões de células do
organismo adulto, contendo cada
uma delas o pacote completo de
instruções armazenadas nos 30
mil genes que herdamos dos pais.
Se todas as células contêm os
mesmos genes (todos), o que faz
uma célula da pele ser diferente
de uma do pâncreas ou de um
neurônio cerebral?
Já nas primeiras fases do embrião, são liberadas substâncias
que vão agir especificamente em
cada grupo de células, nelas ativando certos genes e apagando a
expressão de outros. Numa orquestração impecável, cada célula migra para um local determinado do embrião, onde passará a
exprimir exclusivamente os genes
necessários para o exercício de
sua futura função. Nas que formarão a pele, é ativado o gene
responsável pela produção de
queratina, proteína importante
para revestir e impermeabilizar a
superfície do corpo, e silenciado o
gene que as obrigaria a produzir
insulina, por exemplo. No pâncreas, acontece o oposto: o gene
da insulina é ativado, e o da queratina, amordaçado.
O mesmo processo de divisão
celular prossegue depois do nascimento, para a renovação permanente dos tecidos do corpo: copiar
os genes todos e distribuir o pacote completo para cada célula nova. Como durante a divisão celular podem ocorrer espontaneamente pequenos erros (mutações)
inerentes a qualquer mecanismo
de cópia, nossas células dispõem
de mecanismos de reparação
muito eficazes para impedir que
as células-filhas nasçam diferentes da que lhes deu origem.
Por questão probabilística, o
passar dos anos e a exposição a
agentes químicos ou físicos, no
entanto, podem provocar mutações sucessivas nos genes de determinada célula impossíveis de serem reparadas. A imensa maioria
dessas mutações desconcerta o
funcionamento celular de tal forma que se torna incompatível
com a vida: a célula morre e é eliminada.
Ocasionalmente, porém, algumas mutações se acumulam justamente nos genes que controlam
o mecanismo de divisão celular.
Há genes que ativam a divisão
das células normais (são os oncogenes) e outros que se contrapõem
à ação deles: bloqueiam o processo de divisão (são os genes supressores). A ação ajustada desses
dois grupos de genes é que mantém o equilíbrio preciso entre o
número de células que morrem e
que nascem todos os dias em nosso corpo.
A transformação maligna ocorre quando se acumulam determinadas mutações nos oncogenes,
que ativam a multiplicação celular, ou nos genes supressores, que
deveriam silenciá-los. Nessas condições, a célula passa a se multiplicar excessivamente como se tivesse voltado ao estágio embrionário, mas sem o controle harmonioso que existia nessa fase. O resultado é a formação de um agrupamento microscópico de células-filhas, clones da mãe desvairada
que lhes deu origem.
À medida que as divisões prosseguem e as células que nascem se
empilham desordenadamente
umas sobre as outras, no entanto,
a nutrição se transforma num
problema crucial. Para resolvê-lo,
as células malignas produzem
proteínas capazes de atrair a formação de novos vasos sanguíneos
em sua direção. Em pouco tempo
está formada uma rede de capilares que irrigam o tumor microscópico, garantindo-lhe acesso aos
nutrientes.
Mas a estratégia tem um preço:
a irrigação traz para o local os
glóbulos brancos responsáveis pela defesa imunológica. Lá, eles reconhecem aquele agrupamento
desobediente às leis do organismo
como estranho e disparam contra
ele uma resposta enérgica. Ao serem atacadas, as células malignas
lançam mão de todos os disfarces
possíveis: da produção de proteínas que bloqueiam a maquinaria
de guerra dos glóbulos brancos à
estratégia de se fingirem de mortas para despistar o inimigo.
Quando conseguem sobreviver,
entra em ação uma de suas principais armas secretas: a capacidade de se desgarrar do tumor inicial, esgueirar-se para dentro dos
vasos, cair na circulação e se aninhar em outros tecidos, formando
focos de metástases à espreita do
momento propício para cumprir
seu destino: multiplicar-se. Ao
contrário das células normais,
que só conseguem se dividir no
órgão de origem, as malignas
conseguem fazê-lo em qualquer
outro. Numa metástase óssea, por
exemplo, o que cresce dentro do
osso são células malignas mamárias, prostáticas ou pulmonares,
de acordo com o local de origem
do tumor primário.
A capacidade de multiplicação
das células malignas não tem limite. Elas se dividem sem pensar
no futuro, predatoriamente, a
ponto de provocar a morte do
próprio corpo que lhes deu origem.
Células normais cultivadas em
laboratório nascem, crescem e
obrigatoriamente morrem, como
nós. As malignas, não. Se não lhes
faltarem nutrientes no meio de
cultura, multiplicam-se sem parar, por décadas e décadas, até o
final dos tempos. São imortais; esse é o segredo que escondem de
nós.
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