São Paulo, quarta-feira, 01 de junho de 2005

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CRÍTICA

Um quarteto diferente, pelo quarteto que faz a diferença

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A maior surpresa foi Frank Bridge (1879-1941), que o Quarteto Guarneri tocou com intensidades reveladoras, anteontem no Cultura Artística. Não dá para dizer que o "Quarteto nš 1" de Bridge foi o ponto alto de um programa que também incluía Mozart (1756-91) e Ravel (1875-1937). Mas a diferença faz diferença, quando multiplicada pela diferença que esses quatro discretos senhores sabem produzir em tudo o que tocam.
Ao longo dos últimos 40 anos (o Guarneri foi criado em 1964), eles já tocaram tudo mesmo, sozinhos e em parceria com músicos como Artur Rubinstein, para dar um único exemplo que dispensa outros. Do quarteto original, incluindo os violinistas Arnold Steinhardt e John Dalley e o violista Michael Tree, só o violoncelista David Soyer não está mais com eles, substituído em 2001 por Peter Wiley (que antes disso atuava no Trio Beaux Arts -em que hoje toca Antonio Meneses).
Quatro décadas fazendo música contribuem para a tal considerável diferença, como se ouviu, acima de tudo, no "Quarteto" de Ravel. Eis a música da felicidade, cifrada em mil acordes dissonantes, que vão se espraiando ao sol das luminosas melodias. "Dá vontade de aplaudir, não dá?", perguntava retoricamente uma amiga, depois do segundo movimento. Dava vontade, sim, para fazer eco ao "pizzicato" (as cordas tocadas com os dedos) e oferecer algum tributo que fosse aos quatro virtuoses. Mas a platéia se controlou, sem um suspiro, até a explosão final de aplausos, "bravos", assobios e até gritos entusiasmados de alguns colegas de profissão.
Três anos depois do Ravel, em 1906, surgiria o "Quarteto em Mi Menor" de Bridge, que soa ao mesmo tempo avançado e retardatário em relação a seu contemporâneo continental. Avançado porque a forma labiríntica e as exaltações fulgurantes de harmonia e sentimento já deixaram para trás a ordem mais ou menos clássica do impressionista francês. Retardatário porque essas mesmas exaltações, afinal, podem ser vistas como dando continuidade à linguagem de Brahms, por vias cada vez mais cromáticas.
Bridge ficou mais famoso como professor de Benjamin Britten do que como o compositor da suíte orquestral "The Sea" (1911), sua única peça relativamente bem conhecida fora da Inglaterra. Seus últimos dois quartetos são tidos como grandes obras do repertório camerístico britânico, mas acabaram, como os primeiros dois, num limbo entre a vanguarda de fins do século 19 e a vanguarda de meados do 20.
Tocado numa paleta incrível de nuances pelo Guarneri, com microdinâmicas milissonicamente precisas, e arrojos elásticos das linhas, o "Quarteto nš 1" alia suas expressivas harmonias a um exercício virtuosístico de contraponto, verdadeiro caleidoscópio de possibilidades. Descabelado, excessivo, imprevisível, termina pondo ênfase nas melancolias, com uma solitária pequena frase do violoncelo, que leva a música silêncio adentro.
Muito diferente do Mozart que abriu ("Quarteto em Si Bemol Maior", K. 589) e fechou a noite (uma das fugas de Bach, arranjadas por ele para quarteto). Talvez nem tanto, em retrospecto, quando se escuta tudo de novo no "replay" da memória, com o som único do Guarneri enchendo de afeto e sentido as câmaras da imaginação.


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