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CRÍTICA
Um quarteto diferente, pelo quarteto que faz a diferença
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A maior surpresa foi Frank
Bridge (1879-1941), que o
Quarteto Guarneri tocou com intensidades reveladoras, anteontem no Cultura Artística. Não dá
para dizer que o "Quarteto nš 1"
de Bridge foi o ponto alto de um
programa que também incluía
Mozart (1756-91) e Ravel (1875-1937). Mas a diferença faz diferença, quando multiplicada pela diferença que esses quatro discretos
senhores sabem produzir em tudo o que tocam.
Ao longo dos últimos 40 anos (o
Guarneri foi criado em 1964), eles
já tocaram tudo mesmo, sozinhos
e em parceria com músicos como
Artur Rubinstein, para dar um
único exemplo que dispensa outros. Do quarteto original, incluindo os violinistas Arnold Steinhardt e John Dalley e o violista
Michael Tree, só o violoncelista
David Soyer não está mais com
eles, substituído em 2001 por Peter Wiley (que antes disso atuava
no Trio Beaux Arts -em que hoje toca Antonio Meneses).
Quatro décadas fazendo música
contribuem para a tal considerável diferença, como se ouviu, acima de tudo, no "Quarteto" de Ravel. Eis a música da felicidade, cifrada em mil acordes dissonantes,
que vão se espraiando ao sol das
luminosas melodias. "Dá vontade
de aplaudir, não dá?", perguntava
retoricamente uma amiga, depois
do segundo movimento. Dava
vontade, sim, para fazer eco ao
"pizzicato" (as cordas tocadas
com os dedos) e oferecer algum
tributo que fosse aos quatro virtuoses. Mas a platéia se controlou,
sem um suspiro, até a explosão final de aplausos, "bravos", assobios e até gritos entusiasmados de
alguns colegas de profissão.
Três anos depois do Ravel, em
1906, surgiria o "Quarteto em Mi
Menor" de Bridge, que soa ao
mesmo tempo avançado e retardatário em relação a seu contemporâneo continental. Avançado
porque a forma labiríntica e as
exaltações fulgurantes de harmonia e sentimento já deixaram para
trás a ordem mais ou menos clássica do impressionista francês.
Retardatário porque essas mesmas exaltações, afinal, podem ser
vistas como dando continuidade
à linguagem de Brahms, por vias
cada vez mais cromáticas.
Bridge ficou mais famoso como
professor de Benjamin Britten do
que como o compositor da suíte
orquestral "The Sea" (1911), sua
única peça relativamente bem conhecida fora da Inglaterra. Seus
últimos dois quartetos são tidos
como grandes obras do repertório camerístico britânico, mas
acabaram, como os primeiros
dois, num limbo entre a vanguarda de fins do século 19 e a vanguarda de meados do 20.
Tocado numa paleta incrível de
nuances pelo Guarneri, com microdinâmicas milissonicamente
precisas, e arrojos elásticos das linhas, o "Quarteto nš 1" alia suas
expressivas harmonias a um exercício virtuosístico de contraponto, verdadeiro caleidoscópio de
possibilidades. Descabelado, excessivo, imprevisível, termina
pondo ênfase nas melancolias,
com uma solitária pequena frase
do violoncelo, que leva a música
silêncio adentro.
Muito diferente do Mozart que
abriu ("Quarteto em Si Bemol
Maior", K. 589) e fechou a noite
(uma das fugas de Bach, arranjadas por ele para quarteto). Talvez
nem tanto, em retrospecto, quando se escuta tudo de novo no "replay" da memória, com o som
único do Guarneri enchendo de
afeto e sentido as câmaras da imaginação.
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