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São Paulo, terça-feira, 01 de julho de 2003

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FERNANDO BONASSI

Álbum de família

Lá está ele outra vez, praguejando de calor no inverno, reclamando de frio no inferno, oscilando à deriva como sempre, como sempre um barco desgovernado ao atracar no porto inseguro do lar por um oceano sem freio, agarrado aos batentes que teimam em fugir, o mundo a girar, um desejo de matar, uma vontade de cair, o desespero manso pendurado nos cornos, olhando a ponta do sapato desgastado nas filas dos salários e das bandejas de salitre, a inocência dos períneos desabados em casamentos fracassados, uns tantos filhos abortados, outros mais perdidos, muitos santos venerados ao acaso, o sexo mudo, murcho, acoxambrado no aperto das cuecas ensebadas, não dá mais nada...
São 48 anos de serviços imprestáveis, 35 comprovados na carteira esmagada em preces, ralando o terço dos mesmos trabalhos, calejando os dedos, subitamente desempregado do que interessa ser feito, incapacitado praquilo que de melhor queremos, aposentado por máquinas eficientes e generosas adaptadas a estes tempos, contando trocados como dízimos roubados, vivendo de bicos esfolados, cestas básicas e tapinhas nas costas, as rugas empilhadas pelas vértebras arqueadas, a barba de cáctus espetada, branca, cinza, rosada, os olhos marejados sufocados nas órbitas lasseadas, os ouvidos encerados de promessas adiadas, um espanto estampado de porradas, em plena posse de sua demência, gesticulando em delírio pra aranhas penduradas, batendo continência pra generais paramentados no armário, agentes do FBI escondidos no forno, comunistas históricos na geladeira e baratas repugnantes que se agigantam de sombras pelas lâmpadas, afugentando moscas preguiçosas de pães amassados sem recheio previsível, desafiando a gravidade na medida do impossível, assustando os ratos gordos que pulam da mesa magra, a velhice cansada e escarrada, como se discursasse pra uma platéia de sábios vigaristas ou congressistas salafrários, resolvendo problemas hereditários, contando histórias fantásticas de sucesso e aventuras amorosas vultuosas, tapetes voadores e palácios majestosos, maluco de tudo que possa fazer sentido, das mazelas esquecido, a boca rachada por cem sóis de um deserto com tártaros imemoriais e bafos mortais, os dentes aos cacos das raízes, o sorriso abafado dos infelizes, a língua empalada na garganta seca, o esôfago arranhado de gastrites, pancreatites terminais, estreitamento das fossas nasais, diabetes, bursite, úlceras supuradas, gengivite, frieiras, o fígado corroído pelos ácidos biliares, o humor ao sabor de variações lunares, convidando os demônios a entrar, a brincar de casinha, a dançar em cima do seu cadáver esquisito um rito exclusivo, aos salamalaques ridículos, culpando um deus exausto de desígnios, a carne inchada, a calça manchada, a camisa amarrotada vincada nos balcões debruçados, o lenço empedrado no bolso enfiado, entre sonhos, anemia e mandamentos, entre petiscos fermentados e cães sarnentos, entre bilhões de coitados afogados nesses copos de azar e de ressentimentos, juntando os restos das garrafas abandonadas na despensa, cervejas chocas, vinhos azedos, cachaças destiladas, comprimidos vencidos, gases inflamáveis, agitado em polêmicas lamentáveis, acordando a madrugada de galos, vigias e parentes insones, esbravejando por uma gota de álcool, de vinagre, de gasolina, de coragem, de veneno que seja, esmurrando eletrodomésticos e panelas de arroz gelado, apanhando de rodos pendurados e vassouras encostadas, enxugando o suor do rosto em panos engordurados, lançando pratos nas paredes escorregadias, as juntas dos ossos rangendo, as contas sem fundo crescendo, as artérias entupidas latejando, os músculos pendurados de pelancas, marcando os dedos nodosos de cigarros cancerosos, à mercê de cataratas encruadas, rins comprometidos e tumores que podem se romper a qualquer momento...
Atordoado demais pra preencher um formulário, mesquinho demais pra pedir ajuda, fodido demais pra uma UTI de convênio, as ambulâncias chegam a fugir com as sirenes em silêncio, varejando cada ponto obscuro desse cômodo hipotecado de receios, remelas vitrificadas nos cílios, verrugas dilaceradas por giletes enferrujadas, feridas e melecas cavoucadas, hematomas corrompidos às tropeçadas por calçadas palmilhadas de quatro, como uma bunda ambulante e arquejante, como um mastodonte extinto, veemente como uma histérica humilhada, abrindo a porta do guarda-roupa e mijando no velho terno guardado pra última cerimônia digna porque pensa estar no banheiro, porque pensa estar, porque ainda pensa, flagrando extraterrestres invasores de corpos e encostos malvados e microfones sem fio por todos os lados, são morcegos irados arranhando a sua pele, os seus ouvidos, os seus escândalos...
Ninguém mais dorme na família entulhada naquele quarto onde as camas de campanha espalhadas são sufocadas de trepadas em travesseiros de alívio... No duro colchão, no entanto, ao escanteio do chão, um menino assustado está ligado, novo demais pra perdoá-lo, covarde demais pra encará-lo, quer apenas sua morte, ou que amanheça. Instantaneamente.


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