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FERNANDO BONASSI
Álbum de família
Lá está ele outra vez, praguejando de calor no inverno, reclamando de frio no inferno, oscilando à deriva como sempre, como sempre um barco desgovernado ao atracar no porto inseguro
do lar por um oceano sem freio,
agarrado aos batentes que teimam em fugir, o mundo a girar,
um desejo de matar, uma vontade de cair, o desespero manso
pendurado nos cornos, olhando a
ponta do sapato desgastado nas
filas dos salários e das bandejas
de salitre, a inocência dos períneos desabados em casamentos
fracassados, uns tantos filhos
abortados, outros mais perdidos,
muitos santos venerados ao acaso, o sexo mudo, murcho, acoxambrado no aperto das cuecas
ensebadas, não dá mais nada...
São 48 anos de serviços imprestáveis, 35 comprovados na carteira esmagada em preces, ralando o
terço dos mesmos trabalhos, calejando os dedos, subitamente desempregado do que interessa ser
feito, incapacitado praquilo que
de melhor queremos, aposentado
por máquinas eficientes e generosas adaptadas a estes tempos,
contando trocados como dízimos
roubados, vivendo de bicos esfolados, cestas básicas e tapinhas nas
costas, as rugas empilhadas pelas
vértebras arqueadas, a barba de
cáctus espetada, branca, cinza,
rosada, os olhos marejados sufocados nas órbitas lasseadas, os
ouvidos encerados de promessas
adiadas, um espanto estampado
de porradas, em plena posse de
sua demência, gesticulando em
delírio pra aranhas penduradas,
batendo continência pra generais
paramentados no armário, agentes do FBI escondidos no forno,
comunistas históricos na geladeira e baratas repugnantes que se
agigantam de sombras pelas lâmpadas, afugentando moscas preguiçosas de pães amassados sem
recheio previsível, desafiando a
gravidade na medida do impossível, assustando os ratos gordos
que pulam da mesa magra, a velhice cansada e escarrada, como
se discursasse pra uma platéia de
sábios vigaristas ou congressistas
salafrários, resolvendo problemas
hereditários, contando histórias
fantásticas de sucesso e aventuras
amorosas vultuosas, tapetes voadores e palácios majestosos, maluco de tudo que possa fazer sentido, das mazelas esquecido, a boca
rachada por cem sóis de um deserto com tártaros imemoriais e
bafos mortais, os dentes aos cacos
das raízes, o sorriso abafado dos
infelizes, a língua empalada na
garganta seca, o esôfago arranhado de gastrites, pancreatites terminais, estreitamento das fossas
nasais, diabetes, bursite, úlceras
supuradas, gengivite, frieiras, o fígado corroído pelos ácidos biliares, o humor ao sabor de variações lunares, convidando os demônios a entrar, a brincar de casinha, a dançar em cima do seu
cadáver esquisito um rito exclusivo, aos salamalaques ridículos,
culpando um deus exausto de desígnios, a carne inchada, a calça
manchada, a camisa amarrotada
vincada nos balcões debruçados,
o lenço empedrado no bolso enfiado, entre sonhos, anemia e
mandamentos, entre petiscos fermentados e cães sarnentos, entre
bilhões de coitados afogados nesses copos de azar e de ressentimentos, juntando os restos das
garrafas abandonadas na despensa, cervejas chocas, vinhos
azedos, cachaças destiladas, comprimidos vencidos, gases inflamáveis, agitado em polêmicas lamentáveis, acordando a madrugada de galos, vigias e parentes
insones, esbravejando por uma
gota de álcool, de vinagre, de gasolina, de coragem, de veneno que
seja, esmurrando eletrodomésticos e panelas de arroz gelado,
apanhando de rodos pendurados
e vassouras encostadas, enxugando o suor do rosto em panos engordurados, lançando pratos nas
paredes escorregadias, as juntas
dos ossos rangendo, as contas sem
fundo crescendo, as artérias entupidas latejando, os músculos pendurados de pelancas, marcando
os dedos nodosos de cigarros cancerosos, à mercê de cataratas encruadas, rins comprometidos e
tumores que podem se romper a
qualquer momento...
Atordoado demais pra preencher um formulário, mesquinho
demais pra pedir ajuda, fodido
demais pra uma UTI de convênio,
as ambulâncias chegam a fugir
com as sirenes em silêncio, varejando cada ponto obscuro desse
cômodo hipotecado de receios, remelas vitrificadas nos cílios, verrugas dilaceradas por giletes enferrujadas, feridas e melecas cavoucadas, hematomas corrompidos às tropeçadas por calçadas
palmilhadas de quatro, como
uma bunda ambulante e arquejante, como um mastodonte extinto, veemente como uma histérica humilhada, abrindo a porta
do guarda-roupa e mijando no
velho terno guardado pra última
cerimônia digna porque pensa estar no banheiro, porque pensa estar, porque ainda pensa, flagrando extraterrestres invasores de
corpos e encostos malvados e microfones sem fio por todos os lados, são morcegos irados arranhando a sua pele, os seus ouvidos, os seus escândalos...
Ninguém mais dorme na família entulhada naquele quarto onde as camas de campanha espalhadas são sufocadas de trepadas
em travesseiros de alívio... No duro colchão, no entanto, ao escanteio do chão, um menino assustado está ligado, novo demais pra
perdoá-lo, covarde demais pra
encará-lo, quer apenas sua morte,
ou que amanheça. Instantaneamente.
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