São Paulo, sexta-feira, 01 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ERUDITO/CRÍTICA

Loucuras e desmesuras do barroco italiano com Il Giardino Armonico

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Para quem não for especialista em retórica barroca italiana, o nome do conjunto, Il Giardino Armonico, pode sugerir algo delicado e adocicado. Bastaria o primeiro compasso do primeiro solo do "spalla" Enrico Onofri, tocando o "Concerto em Ré Maior" ("Grão-Mogol"), de Vivaldi (1678-1741), anteontem no Cultura Artística, para lhe fazer mudar de opinião.
Ele saiu serrando a quarta corda como um Gengis Khan, tirando um som rouco e louco, muito longe de adocicado e delicado. E a coisa não parava. Teve gente procurando a mesa de som, para entender o que era aquilo. Mas aquilo era Vivaldi, mesmo, tocado com gana por um dos conjuntos mais raçudos da música antiga.
Quando parou, o contraste era positivamente barroco. De louco e rouco a... delicado e adocicado. Depois insinuante. Depois sonhador. Depois entusiasmado. No intervalo, um conhecido psicanalista e melômano veio comentar que achara a interpretação muito romântica. "Mas isso é o barroco", respondeu um violinista profissional, poupando o crítico da explicação. Isso é o barroco -especialmente o barroco do Giardino Armonico, que faz pensar em Tintoretto e El Greco mais do que em Rafael.
No caso de "Il Pianto di Arianna" (o pranto de Ariana), de Pietro Locatelli (1695-1764), o que já era incrivelmente dramático foi ficando dramaticamente incrível, à medida que Teseu confirmava seu caráter e Ariana desmontava. Seu "devaneio de idéias" definia um dos roteiros da paixão, com lentas, excruciantes dissonâncias entrecortadas por longos, excruciantes silêncios. E os trinados da "declaração desesperada", no fim, lacravam com fúria esse teatro musical.
Tocando juntos desde 1985, com várias formações, e sob a direção de Giovanni Antonini desde 1989, o grupo está devidamente consagrado, mundo afora, como expoente da interpretação barroca. Gravaram dezenas de discos, incluindo um Vivaldi "best-seller" com a cantora Cecilia Bartoli. Dessa vez, vieram com 11 cordas, mais fagote e cravo. Fazem tudo com alegria, espontaneamente clara nos sorrisos e conversas entre uma peça e outra.
Antonini é também um virtuose da flauta doce. Em 2001, quando estiveram em São Paulo, ele fez um dos concertos de Vivaldi para "flautino" e orquestra (popular no século 17, o "flautino" é o "piccolo" das flautas doces). Agora tocou o outro. Aqui, como no "Concerto para 4 Violinos e Orquestra" e ainda mais no "Grão-Mogol", Vivaldi faz malabarismos melódicos e harmônicos, com modulações aberratórias, uso expressivo de intervalos incomuns e síncopas importadas da Lombardia (e dos países eslavos). É o tipo de coisa que Antonini, Onofri e seus parceiros gostam de tocar.
Adaptado sem exagero, faz muito bem, também, ao anglo-germano Händel (1685-1759), de quem o Giardino tocou um "Concerto Grosso" (em si menor, op. 6/12), na primeira parte. A separação espacial entre primeiros e segundos violinos beneficia -beneficia, não, revela, ou inventa engenhosos efeitos estereofônicos, impossíveis quando os naipes ficam lado a lado. Vale o mesmo para os solos dos "spallas" no lindo "Minueto" que fecha o "Concerto Grosso", op. 5/4, de Giuseppe Sammartini (1695-1750).
Um concerto desses é uma alegria, no meio da correria. Ilumina e sombreia o espírito, com energia e humor. Recarrega a vida de vida e deixa a gente feliz uma semana -louco, rouco, entusiasmado, delicado, até adocicado.


Avaliação:     

Texto Anterior: Música: DVD traz cena musical histórica brasileira
Próximo Texto: Cinema/"Guerra dos Mundos": Spielberg faz um espelho de nossos medos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.