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CINEMA/"GUERRA DOS MUNDOS"
Ficção científica se torna crível ao retratar o pânico da insaciável cobiça humana
Spielberg faz um espelho de nossos medos
MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA
A Terra volta a ser atacada por
alienígenas, desta vez sob a chancela de Steven Spielberg, que até
então nos havia mostrado uma
outra faceta dos ETs, a de criaturas benevolentes, quase sacras em
sua sabedoria e mesmo em seus
poderes. Mas não agora.
Eles vêm para acabar com a
gente, usando máquinas de destruição infernais, com um design
que presta homenagem aos grandes clássicos da ficção científica
dos anos 50 e 60, muito ferro,
enormes, terríveis, com raios capazes de vaporizar a tudo e a todos em frações de segundo.
O clima é absolutamente apocalíptico, os tons de cinza dominam
o filme, cuja cinematografia é belíssima, extraindo o lirismo do
contraste entre a destruição e a
coragem e a persistência humanas, especialmente nos olhos e na
atuação da sensacional Dakota
Fanning, que faz o papel da filha
de Ray Ferrier (Tom Cruise) e
rouba o show.
Quem viu a versão do filme de
1953 vai reconhecer a história.
Claro, como o cinema deve retratar a realidade de sua época, foram feitas certas modificações: o
foco desta versão é a luta de um
pai desajustado para salvar o filho
e a filha a qualquer preço e, eventualmente, também salvar sua relação com eles. Isso humaniza o
filme de uma forma já bem conhecida de Hollywood, o drama
familiar como pano de fundo (e
de frente) para as tragédias concretas que ocorrem na tela.
O filme traz também algumas
menções à ameaça terrorista nos
EUA, os ataques sendo até confundidos inicialmente com mais
uma ofensiva. Os medos da sociedade mudam com o tempo, e o cinema espelha isso.
Mas por que então essa estranha
persistência da ameaça dos extraterrestres? Pelo que nós sabemos
hoje, a probabilidade de vida inteligente em nossa vizinhança cósmica é muito pequena. Certamente, ela não existe no nosso sistema solar. O filme, aliás, nunca
revela de onde vêm os ETs, ao
contrário do romance de H.G.
Wells ou da adaptação de rádio
feita por Orson Welles em 1938 ou
mesmo da primeira versão cinematográfica, onde os ETs eram
marcianos.
Como Marte parece um deserto
e não encontramos sinais de vida
inteligente por lá, isso dá mais
credibilidade ao filme. Para surtir
efeito, a ficção tem de ser muito
mais crível do que a realidade.
Os ETs parecem desesperados
por água, feito o que vai ocorrer
aqui na Terra se não aprendermos a preservá-la. Eles vieram para cá porque tornaram o seu planeta inabitável. Segundo o filme,
nos observaram durante muito
tempo antes de resolverem atacar.
A Terra é uma preciosidade cósmica, ao menos para as formas de
vida que dependem de água para
a sua sobrevivência. Quando vêm,
não procuram diálogos ou convenções, vêm para destruir e dominar de modo a garantir o controle do que precisam para a sua
sobrevivência. Eles são a pior espécie de invasores, os que não
querem apenas colonizar. Matam
os nativos após usá-los.
Mas já vimos esse filme: essa é a
história dos invasores europeus
ao chegar às Américas e à África.
Pensem que é estimado que o
Brasil tivesse mais de 10 milhões
de índios antes de 1500. O medo
que temos dos ETs é o medo que
temos de nós mesmos, do nosso
poder destrutivo, da nossa cobiça
e apetite insaciável pelo que o planeta tem a oferecer. Como nós,
eles estão longes de serem perfeitos ou invencíveis.
Marcelo Gleiser é professor de física
teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Guerra dos Mundos
War of the Worlds
Direção: Steven Spielberg
Produção: EUA, 2005
Com: Tom Cruise, Dakota Fanning
Quando: em cartaz nos cines Eldorado, Interlagos, Jardim Sul e circuito
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