São Paulo, sexta-feira, 01 de julho de 2005

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CINEMA/"GUERRA DOS MUNDOS"

Ficção científica se torna crível ao retratar o pânico da insaciável cobiça humana

Spielberg faz um espelho de nossos medos

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

A Terra volta a ser atacada por alienígenas, desta vez sob a chancela de Steven Spielberg, que até então nos havia mostrado uma outra faceta dos ETs, a de criaturas benevolentes, quase sacras em sua sabedoria e mesmo em seus poderes. Mas não agora.
Eles vêm para acabar com a gente, usando máquinas de destruição infernais, com um design que presta homenagem aos grandes clássicos da ficção científica dos anos 50 e 60, muito ferro, enormes, terríveis, com raios capazes de vaporizar a tudo e a todos em frações de segundo.
O clima é absolutamente apocalíptico, os tons de cinza dominam o filme, cuja cinematografia é belíssima, extraindo o lirismo do contraste entre a destruição e a coragem e a persistência humanas, especialmente nos olhos e na atuação da sensacional Dakota Fanning, que faz o papel da filha de Ray Ferrier (Tom Cruise) e rouba o show.
Quem viu a versão do filme de 1953 vai reconhecer a história. Claro, como o cinema deve retratar a realidade de sua época, foram feitas certas modificações: o foco desta versão é a luta de um pai desajustado para salvar o filho e a filha a qualquer preço e, eventualmente, também salvar sua relação com eles. Isso humaniza o filme de uma forma já bem conhecida de Hollywood, o drama familiar como pano de fundo (e de frente) para as tragédias concretas que ocorrem na tela.
O filme traz também algumas menções à ameaça terrorista nos EUA, os ataques sendo até confundidos inicialmente com mais uma ofensiva. Os medos da sociedade mudam com o tempo, e o cinema espelha isso.
Mas por que então essa estranha persistência da ameaça dos extraterrestres? Pelo que nós sabemos hoje, a probabilidade de vida inteligente em nossa vizinhança cósmica é muito pequena. Certamente, ela não existe no nosso sistema solar. O filme, aliás, nunca revela de onde vêm os ETs, ao contrário do romance de H.G. Wells ou da adaptação de rádio feita por Orson Welles em 1938 ou mesmo da primeira versão cinematográfica, onde os ETs eram marcianos.
Como Marte parece um deserto e não encontramos sinais de vida inteligente por lá, isso dá mais credibilidade ao filme. Para surtir efeito, a ficção tem de ser muito mais crível do que a realidade.
Os ETs parecem desesperados por água, feito o que vai ocorrer aqui na Terra se não aprendermos a preservá-la. Eles vieram para cá porque tornaram o seu planeta inabitável. Segundo o filme, nos observaram durante muito tempo antes de resolverem atacar.
A Terra é uma preciosidade cósmica, ao menos para as formas de vida que dependem de água para a sua sobrevivência. Quando vêm, não procuram diálogos ou convenções, vêm para destruir e dominar de modo a garantir o controle do que precisam para a sua sobrevivência. Eles são a pior espécie de invasores, os que não querem apenas colonizar. Matam os nativos após usá-los.
Mas já vimos esse filme: essa é a história dos invasores europeus ao chegar às Américas e à África. Pensem que é estimado que o Brasil tivesse mais de 10 milhões de índios antes de 1500. O medo que temos dos ETs é o medo que temos de nós mesmos, do nosso poder destrutivo, da nossa cobiça e apetite insaciável pelo que o planeta tem a oferecer. Como nós, eles estão longes de serem perfeitos ou invencíveis.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

Guerra dos Mundos
War of the Worlds
Direção: Steven Spielberg
Produção: EUA, 2005
Com: Tom Cruise, Dakota Fanning
Quando: em cartaz nos cines Eldorado, Interlagos, Jardim Sul e circuito


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