São Paulo, sexta-feira, 01 de julho de 2005

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"Guerra dos Mundos" recupera a histeria marciana

NIGEL ANDREWS
DO "FINANCIAL TIMES"

Eles estão de volta. Ou, citando o novo "Guerra dos Mundos", este de Steven Spielberg, em cartaz em sua cidade, em seu Estado ou em seu país. Na realidade, vale perguntar: será que eles tinham chegado a ir embora?
Neste momento em que o público mundial mais uma vez enfrenta uma invasão marciana, também é hora de nos perguntarmos o motivo: por que, mais ou menos uma vez a cada geração, precisamos nos submeter a essa psicoterapia sobre ameaças do espaço?
Gritar diante de extraterrestres deve nos fazer bem. A que outra conclusão podemos chegar quando analisamos uma história pontilhada de coisas como "A Ameaça que Veio do Espaço", "Invasores de Marte", "O Enigma de Outro Mundo" e "Marte Ataca!"?
A história da histeria marciana começou com um livro e se aprofundou com uma peça radiofônica. Um homem chamado H.G. Wells escreveu o livro em 1898. Um homem chamado Orson Welles fez história na rádio ao dramatizá-la, 40 anos mais tarde.
O livro foi o grande gabarito básico da literatura que gira em torno do tema "os seres alienígenas que estão entre nós". A dramatização radiofônica pode ser vista como modelo ainda mais poderoso. Ela quebrou os moldes e as restrições do protocolo artístico, provocando choque, ultraje, emoção e pânico desbragado.
Em 30 de outubro de 1938, Orson Welles e seu grupo de teatro Mercury Theatre encenaram na rádio CBS algo que hoje seria descrito como falso documentário. "A Guerra dos Mundos", em adaptação assinada por Howard Koch, foi apresentada como uma transmissão ao vivo de uma notícia real. O pânico se espalhou entre os ouvintes quando o que pareciam ser repórteres externos apavorados foram ouvidos descrevendo a aparência e o comportamento de marcianos que teriam aterrissado com sua nave em Grover's Mill, Nova Jersey, a 32 km de Princeton. Durante a transmissão, um suposto especialista foi chamado da própria Universidade Princeton para comentar o que estaria acontecendo. A utilização desse reduto do mundo acadêmico como ponto magnético centralizador do drama acabou por ter uma ressonância impressionante.
Em poucos minutos, ouvintes americanos estavam chamando a polícia, abandonando suas casas, correndo para os parques das cidades ou enfrentando engarrafamentos provocados pelos carros em fuga. A base naval de Nova York cancelou as licenças em terra dos marinheiros. Dois professores de geologia de Princeton saíram para procurar evidências de um meteoro caído.
O toque magistral de Orson Welles foi iniciar a transmissão com uma suposta interrupção da programação normal, de modo que a primeira notícia da invasão marciana interrompeu uma sessão de música que vinha induzindo um clima de falsa segurança.
Depois de ter vivido seus melhores momentos primeiro na página impressa e depois nas ondas radiofônicas públicas, a invasão alienígena chegou às salas de projeção dos cinemas. Isso aconteceu após a Segunda Guerra Mundial.
O primeiro filme "Guerra dos Mundos", de 1953, foi uma bobagem em estilo "Dia do Julgamento Final". Baseando-se em imagens de aspiradores de pó animados e munidos de tentáculos, difundiu a idéia de que "eles querem nos pegar", sendo que "eles" poderiam ser decodificados ou como os marxistas ou como as nações nuclearizadas.
O fato de quase todos os filmes de terror dos anos 50 sobre invasões espaciais terem sido trabalhos de baixo orçamento foi revelador. Hollywood não achava que o espaço sideral justificasse um investimento pesado. O cinema espacial precisou esperar até o final dos anos 70 ou início dos anos 80 para ganhar grandes orçamentos. O terror foi substituído pela aventura de desenho animado e o folclore ("Star Wars", "Jornada nas Estrelas: O Filme"), por filmes de cineastas cinéfilos convencidos de que os extraterrestres eram algo como crianças simpáticas, talvez grandes demais ("Contatos Imediatos do Terceiro Grau", "ET", "Viagem ao Mundo dos Sonhos") ou por aventuras de terror nas quais os monstros eram tão distantes de nós que não representavam ameaça. Quantos anos-luz isso não está do pânico nas ruas, real e perturbador das obras de Wells e de Welles?
Quando os invasores finalmente voltaram à Terra para valer, em meados dos anos 90, com os lançamentos de "Independence Day", "Homens de Preto" e "Marte Ataca!", o tom de brincadeira já se tornara dominante.
Em 2005, para nos emocionarmos realisticamente com a idéia da vida no espaço, temos que pensar em micróbios, proteínas ou bactérias ocultos. Não existe mais "leve-me até seu líder". Há apenas "mostre-me seus aminoácidos".
Em "Guerra dos Mundos" de Steven Spielberg, o herói é um sujeito de classe trabalhadora de Nova Jersey (Tom Cruise) que se distanciou de sua família, preocupa-se apenas consigo mesmo e é um ser humano com defeitos. A impressão é que Spielberg estaria nos oferecendo um drama moral disfarçado de aventura de ficção científica. Mas será que é isso o que queremos de um filme sobre o terror espacial? Esse viés humanista caloroso foi o que havia de errado em "ET" e "Contatos Imediatos". Mas os tempos atuais tornam difícil imaginar que uma história sobre ameaças vindas de Marte possa mexer com as entranhas do público como fez na época de Wells ou de Welles, mesmo que faça referências subjacentes à limpeza étnica, como se comenta.
Os 40 anos e 40 noites que separaram o romance do drama radiofônico não constituíram separação nenhuma. Foram uma trajetória ininterrupta de pesadelo para um mundo que sofreu uma grande guerra e se preparava para outra e, nos entretempos, se dava conta de que o sistema solar era um lugar grande e nunca mapeado. Se horrores criados pelo homem puderam cair dos céus abertos sobre a Terra, quem poderia prever que outros terrores, produzidos em regiões mais distantes, não seriam capazes de fazer o mesmo? Assim, duas grandes obras, ambas as quais compreenderam essa capacidade para o pânico, expuseram e exploraram esse sentimento com o objetivo artístico último de expor seu significado e, possivelmente, exorcizá-lo. A histeria marciana era a versão poética da histeria de massas. Como as grandes obras trágicas, ela nos mostrava o quão rapidamente o homem pode ser destituído de sua aparente humanidade e dignidade, mas, ao mesmo tempo, quão ferozmente ele é capaz de lutar para conservá-la.


Tradução de Clara Allain

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