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Bartleby repete seu poder de negação
Edição de texto de Melville encarna personagem e exige esforço do comprador
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
A passos lentos, caminhando
pelos corredores de uma livraria,
um sujeito sem pretensões poderá porventura ter sua atenção
atraída por um livro específico.
Na capa de cor verde-escuro cujo
material poderá fazê-lo lembrar-se estranhamente de uma pasta
que preferiu deixar no escritório,
o sujeito há de ler, impresso em tipos antigos, "Bartleby, o Escrivão" e, na linha de baixo, a lacônica explicação: "Uma História de
Wall Street".
Se a tipografia que o remete
subconscientemente a meados do
século 19 não o atrair, talvez esse
sujeito reconheça o nome do autor daquele livro, o americano
Herman Melville (1819-1891),
aquele de "Moby Dick", e se interesse em abri-lo e folheá-lo.
Não será capaz.
Terá antes que batalhar contra
uma costura estranha: uma linha
vermelha e comprida mantendo
impenetrável também o lado direito do objeto, que usualmente
daria acesso à leitura.
Observando tratar-se, sim, de
um livro, uma vez que o nome da
editora Cosac Naify pode ser visto
na contracapa, talvez o sujeito decida então apanhá-lo e caminhar
até um caixa. Nesse instante, observará um selo com palavras estranhas demais para estarem em
um objeto à venda: "Acho melhor
não comprá-lo".
Esse é o livro que inspirou aquele outro do espanhol Enrique Vila-Matas, o "Bartleby e Companhia", talvez lhe diga o vendedor,
tratando de convencê-lo. O sujeito, então, apesar do conselho anterior e dos R$ 29 cobrados pelo
pequeno objeto, atinará em levá-lo para casa e, costura desfeita,
ainda não terá acesso a qualquer
famoso texto. Encontrará apenas
páginas e mais páginas com a figura de uma parede de tijolos, escurecida talvez pelos dias em que
o livro permaneceu fechado na livraria, desde seu lançamento em
julho de 2005.
Perceberá, então, que o marcador transparente que veio com o
objeto adquirido na loja é feito de
um material um tanto mais cortante do que os marcadores comuns. Algo lhe dirá que aquilo lhe
é útil, e finalmente poderá entender que deve usá-lo para cortar
página a página, como nos livros
antigos. Cortando-as, conseguirá
deparar-se com o texto, podendo
deixar finalmente de ser sujeito
para tornar-se leitor.
"Sim, é como se o livro resistisse
a ser lido, personificando a opacidade do personagem Bartleby e
sua negação a ser entendido pelo
narrador", declara Elaine Ramos,
diretora de arte da Cosac Naify e
responsável pelo projeto gráfico
do livro. Explica que a obra faz
parte de uma experiência de fazer
edições especiais para livros curtos, de contos ou novelas. Este é o
segundo. Antes dele, "O Primeiro
Amor", de Samuel Beckett, em
edição pouco menos ousada.
O leitor de "Bartleby, o Escrivão" terá de cortar 20 vezes a lateral das páginas para ter acesso ao
texto completo. A cada corte,
duas páginas se apresentam, exceto na 20ª vez, quando surge inteiro o posfácio escrito por Modesto Carone especialmente para
a edição.
A cada página, afirma Ramos, o
livro dirá "Acho melhor não", da
mesma forma que o escriturário
se recusa a atender aos pedidos de
seu patrão. "E, se algum comprador cansado e impaciente quiser
devolver o livro, estará agindo
exatamente como o narrador, que
tenta despedir o Bartleby para se
livrar dele", ironiza a artista.
Bartleby, o Escrivão
Autor: Herman Melville
Tradução: Irene Hirsch
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 29 (88 págs.)
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