São Paulo, sexta-feira, 01 de julho de 2005

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Bartleby repete seu poder de negação

Edição de texto de Melville encarna personagem e exige esforço do comprador

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

A passos lentos, caminhando pelos corredores de uma livraria, um sujeito sem pretensões poderá porventura ter sua atenção atraída por um livro específico. Na capa de cor verde-escuro cujo material poderá fazê-lo lembrar-se estranhamente de uma pasta que preferiu deixar no escritório, o sujeito há de ler, impresso em tipos antigos, "Bartleby, o Escrivão" e, na linha de baixo, a lacônica explicação: "Uma História de Wall Street".
Se a tipografia que o remete subconscientemente a meados do século 19 não o atrair, talvez esse sujeito reconheça o nome do autor daquele livro, o americano Herman Melville (1819-1891), aquele de "Moby Dick", e se interesse em abri-lo e folheá-lo.
Não será capaz.
Terá antes que batalhar contra uma costura estranha: uma linha vermelha e comprida mantendo impenetrável também o lado direito do objeto, que usualmente daria acesso à leitura.
Observando tratar-se, sim, de um livro, uma vez que o nome da editora Cosac Naify pode ser visto na contracapa, talvez o sujeito decida então apanhá-lo e caminhar até um caixa. Nesse instante, observará um selo com palavras estranhas demais para estarem em um objeto à venda: "Acho melhor não comprá-lo".
Esse é o livro que inspirou aquele outro do espanhol Enrique Vila-Matas, o "Bartleby e Companhia", talvez lhe diga o vendedor, tratando de convencê-lo. O sujeito, então, apesar do conselho anterior e dos R$ 29 cobrados pelo pequeno objeto, atinará em levá-lo para casa e, costura desfeita, ainda não terá acesso a qualquer famoso texto. Encontrará apenas páginas e mais páginas com a figura de uma parede de tijolos, escurecida talvez pelos dias em que o livro permaneceu fechado na livraria, desde seu lançamento em julho de 2005.
Perceberá, então, que o marcador transparente que veio com o objeto adquirido na loja é feito de um material um tanto mais cortante do que os marcadores comuns. Algo lhe dirá que aquilo lhe é útil, e finalmente poderá entender que deve usá-lo para cortar página a página, como nos livros antigos. Cortando-as, conseguirá deparar-se com o texto, podendo deixar finalmente de ser sujeito para tornar-se leitor.
"Sim, é como se o livro resistisse a ser lido, personificando a opacidade do personagem Bartleby e sua negação a ser entendido pelo narrador", declara Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify e responsável pelo projeto gráfico do livro. Explica que a obra faz parte de uma experiência de fazer edições especiais para livros curtos, de contos ou novelas. Este é o segundo. Antes dele, "O Primeiro Amor", de Samuel Beckett, em edição pouco menos ousada.
O leitor de "Bartleby, o Escrivão" terá de cortar 20 vezes a lateral das páginas para ter acesso ao texto completo. A cada corte, duas páginas se apresentam, exceto na 20ª vez, quando surge inteiro o posfácio escrito por Modesto Carone especialmente para a edição.
A cada página, afirma Ramos, o livro dirá "Acho melhor não", da mesma forma que o escriturário se recusa a atender aos pedidos de seu patrão. "E, se algum comprador cansado e impaciente quiser devolver o livro, estará agindo exatamente como o narrador, que tenta despedir o Bartleby para se livrar dele", ironiza a artista.


Bartleby, o Escrivão
Autor:
Herman Melville
Tradução: Irene Hirsch
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 29 (88 págs.)


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