São Paulo, Quinta-feira, 01 de Julho de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Chega de angústia, chegou a depressão

Nestas duas últimas décadas, sobretudo nos anos 90, aconteceu uma mudança radical. Mudou a tonalidade dominante das queixas e do sofrimento psíquico. Nosso mal-estar passou a se expressar de maneira nova, trocou de dialeto, de aparência e de cheiro: somos cada vez menos angustiados e cada vez mais deprimidos.
A angústia foi boa companheira da modernidade durante quase dois séculos: do romantismo ao existencialismo, ela se encarregou de representar o mal-estar de nossa cultura.
Além do gosto acre de suor frio, além da sensação de vazio interno, de suspensão sem fôlego, além do sofrimento -ser angustiado foi, nessa época toda, um chique literário e filosófico. Ou melhor, uma espécie de marca retórica que confirmava a seriedade das apostas e do envolvimento com a verdade. Você quer ser levado a sério? Mostre-me suas angústias! Elas não mentem.
Hoje, o mesmo passou a valer para a depressão. Além do bafo de dentes não escovados e do relento da cama desfeita, a depressão também é um chique. Desde "Darkness Visible", de William Styron (em 1990), se multiplicam os relatos de catástrofes depressivas e lutas heróicas. Em dez anos, já são centenas -uma espécie de gênero literário autônomo.
Essa constatação cultural e clínica é corroborada pela inquietação dos organismos internacionais que monitoram nossa saúde. A depressão é hoje, nos países ocidentais, o inimigo número 2: a condição mais invalidante depois das doenças cardíacas. É um fato no mínimo curioso para um sintoma que, até 15 anos atrás, mal era reconhecido em sua autonomia.
O que aconteceu? Uma epidemia? Algum novo vírus? Sem dúvida, a indústria farmacêutica sabe promover as doenças para as quais ela tem um remédio com boa perspectiva comercial. Ou seja, ela encontra um remédio, em seguida nomeia a doença curada por ele, a faz existir culturalmente e, portanto, nos sugere (ou impõe) sofrer segundo sua forma. O que garante que a gente recorra ao remédio que está na origem da empreitada. De fato, os antidepressivos -comercializados no fim dos anos 80- inauguraram o sucesso da depressão. Foi com a descoberta do Prozac que a depressão passou a existir como fenômeno cultural e se constituiu como uma entidade nosográfica popular.
Nessa direção, vale a pena ler o livro de David Healy, "The Antidepressant Era" (Harvard 1998). Healy argumenta que a idéia da depressão como patologia específica foi um achado dos laboratórios à caça de clientes para sua nova invenção: os remédios que aumentam a serotonina (Prozac, Paxil, Zoloft etc.). De fato, nos últimos anos, várias pesquisas vêm mostrando que o déficit de serotonina talvez não seja a razão biológica única, ou mesmo decisiva, da depressão e sugerem uma visão mais complexa tanto das depressões quanto de sua abordagem terapêutica.
Nesse clima, seria tentador considerar que o sucesso cultural da depressão seja só um efeito da invenção dos antidepressivos. Mas a idéia não alcança.
Seria impossível afirmar, por exemplo, que o sucesso da angústia foi produzido pela invenção dos ansiolíticos: a angústia começou bem antes. Em outras palavras, as formas de nosso mal-estar não dependem só das sugestões farmacêuticas.
Resta que, neste fim de século, com a ajuda dos laboratórios, a depressão ganhou da angústia. Hoje parece mais interessante (e mais bem recebido socialmente) ser deprimido do que angustiado. A depressão parece mais verdadeira, como se ela manifestasse o que somos melhor do que a angústia.
Por quê? Posso propor uma hipótese: a angústia foi a primeira forma do mal-estar moderno -a expressão do drama de gerações que renunciaram ao mundo ordenado por tradições e hierarquias e tentaram caminhar por conta própria. Ela é a companheira das grandes expectativas, dos futuros incertos, sonhados e receados. Ela é, em suma, o mal-estar do liberto: e agora? O que fazer? Aonde ir?
Ora, contemporânea à chegada do Prozac e da depressão, surgiu (e vem ganhando terreno) a idéia de que a história acabou: basta de expectativas e sonhos incautos. Nem tudo é perfeito, mas alcançamos a época dos ajustes finais. Não cabe mais projetar grandes mudanças e sofrer entre anseios e ansiedades se perguntando como as coisas do mundo vão ficar. O mundo está mais ou menos resolvido. Está na hora de se ocupar da gente, de sorrir (ou fazer caretas) no espelho até ficarmos convencidos de que somos felizes e bonitos.
Com isso, ficamos, sobretudo, deprimidos, pois qualquer furúnculo na ponta do nariz afeta o que mais nos importa: nossa própria imagem. É uma razão para não sair de casa, ficar na cama, deixar de ser e de fazer -contemplando no espelho o retrato de nossa inadequação.
O anseio de futuros gloriosos, em suma, está sendo substituído por uma inconsolável e preguiçosa tristeza: o furúnculo especular nos imobiliza e, assim como a consciência para Hamlet, nos torna eventualmente todos covardes.
Trocam-se, por assim dizer, aspirações e ideais por um bom creme antiacne.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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