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GASTRONOMIA
Lino Villaventura põe a mesa
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Os assuntos de moda costumam durar pouco, la donna
é mobile... Fui ver o Lino Villaventura naquela longínqua semana
de desfiles e, mesmo com 15 dias
de atraso, rendo aqui minha homenagem ao estilista, que continua costurando bem, mas que para minha surpresa também cozinha.
Dessa eu não sabia, fui lá ver
roupas e não eram roupas, era um
grande tabuleiro de doces, espumas de claras batidas, merengues,
alfenins rendilhados, suspiros de
amêndoas, todas as cores pastéis
dos macarrons, o rosado das frutas quase maduras, a casca das
blusas cobrindo somente a polpa,
aflorando a pele sedutora das mulheres, os seios apontando em
transparências, vazamentos. Como diria qualquer mulher, perua
ou não: des-lum-bran-te. Deslumbrante -"Houaiss"-, que
turva a vista por excesso de luz ou
brilho, ofuscante, que maravilha,
que impressiona por suas qualidades raras ou superiores, fascinante, que revela suntuosidade,
luxuoso, faustuoso-, mas assim
mesmo simples. It's fascination, I
know...
A assessoria dava crédito a
Klimt, na inspiração. Pensei em
Sonja Knips, Serena Lederer,
Margareth Wittgenstein, Fritza
Riedler, eu sei, eu vi, eu pesquisei,
mulheres vestidas de algodão-doce, vapores, luzes aquosas, poeiras
cósmicas, mas só os nomes delas
já eram agrumes, azedos, agressivos, picantes.
E o Lino, convenhamos, tem tão
pouco a ver com Viena, apesar de
açucarada.
Não, inspirou-se só, assim de leve. Passou o olho no Klimt, assaltou-o, criou por cima, Klimt veio
dar nas praias do Ceará, com carteira modelo 19, abainhando seus
arabescos com fios de ovos, e sua
Judith com a cabeça de Holofernes, polvilhada de ouro e canela,
tinha ressaibos de sereia, de Iansã.
Branco, azul, lavanda, rosa, verde, amarelo e bronze. Entranhas
de creme, cascas de ovos, fitas de
coco verde.
Uma beleza fina, um virtuosismo de chef toqué, de monge com
suas iluminuras, arte de papel recortado, rendilhado, desenhos de
açúcar fundido.
Apesar de diáfanas e soltas, as
saias se enroscavam levemente
nas pernas como aquele final de
pequenas ondas que morrem,
cansadas, borbulhando ainda,
mansas. E as ranhuras miúdas das
palmeiras, as preguinhas que já
despontavam na última coleção,
tomaram conta, são a base dos
pontos dourados, dos brilhos, dos
melindres.
Tudo vivo, se mexendo, se dobrando, se virando, se encostando, desligando e amarrando, beleza pura de açúcar cândi, arte filigranada, matéria da terra trabalhada em ritos religiosos, perfeitos.
Quase que não dá para acreditar. Arte em alféolos de flores,
borboletas em tremeliques, beijos
de dondon, laços de amor, arrufos, sonhos, mimos. No ar, limão
de cheiro, na boca um gosto de
passas, a alma toda lambuzada de
mel de abelhas de bronze, coleiras
de ouro e pedras, Higéia.
Quebrando a doçura, o andar
duro das mulheres-soldados, a
suspeita de um capacete segurando os cabelos, apoio para a estrutura de açúcar, tão suave que poderia se quebrar, se derreter, o romantismo podado pela postura e
pela magreza. Magras, ai que magras!
Os homens másculos, atentos,
fortes por dentro, sem tempo de
temer a morte, roupas frouxas,
um simples cobrir, despojados,
lambareiros -"Houaiss"-,
aqueles que gostam de comer
lambarices -"Houaiss"-, docinho ou qualquer iguaria saborosa, apresentada de forma delicada. Lambisqueiros.
Lino Villaventura pôs a mesa.
ninahort@uol.com.br
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