São Paulo, segunda-feira, 01 de agosto de 2005

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O cérebro de Homer

Roteirista Al Jean conta a história do sucesso dos Simpsons

ED CAESAR
DO "INDEPENDENT"

Al Jean não aparenta ser um dos homens mais divertidos do planeta. Ele não faz observações hilárias sobre cultura pop nem arrasa as pessoas compulsivamente com seu humor incisivo. Em lugar disso, o homem que, na condição de roteirista chefe, presidiu 375 episódios de "Os Simpsons" -que pode ser descrito como o programa de TV mais engraçado da história- apenas chega, senta-se sem alarde, pede uma água e começa a falar em tom ofegante.
"Acabamos de gravar o episódio com Ricky Gervais", diz ele, falando com as vogais finas do sotaque de Detroit, onde passou sua infância. "Ele queria fazer alguma coisa para tirar sarro de "Troca de Esposas". Então fizemos uma história em que ele manda sua mulher para a família Simpson em troca de Marge, que ele corteja com flores e uma canção. É um episódio superengraçado."
Jean é grandalhão e desajeitado; com sua camisa pólo e calças casuais, parece um garotão universitário de 44 anos. Lembrando do episódio, ele dá uma risadinha fina. "Ricky passou por lá para buscar os Globos de Ouro que recebeu por "The Office". Havia tantos roteiristas fãs dele que resolvemos lhe oferecer um almoço. Ele falou que estaria interessado em escrever um episódio conosco. Num instante, a idéia já tinha virado notícia mundial."
Gervais é mais uma celebridade do longo rol das que já correram para aceitar a chance de ser imortalizadas no seriado animado mais famoso do mundo. Thomas Pynchon, Stephen Hawking e Tony Blair estão entre as pessoas que já apareceram "como elas mesmas" no programa. E é sempre Jean que pega um avião de Los Angeles, onde vive com sua mulher, para encontrar os candidatos a astros. "Todos eles são fãs -isso é importante", diz Jean. "Ricky também é. Foi por isso que ele quis fazer o programa."
Será que há outros fãs que Jean gostaria de incluir no futuro?
"Fiquei um pouco espantado ao saber que o arcebispo de Canterbury era um fã tão grande. Talvez a gente tenha que chamá-lo para o show. Mas eu me espantaria de verdade se conseguíssemos fazer o novo papa entrar na nossa."
Tudo poderia ter sido tão diferente para Jean, que é roteirista do programa desde sua criação, em 1989. "Estavam procurando roteiristas para transformar os episódios curtos do "Tracy Ullman Show" em episódios de meia hora. Eu fui um dos primeiros contratados. Muitos de meus amigos roteiristas não queriam fazer o trabalho porque era desenho animado, mas quando dei uma olhada nos nomes -James Brooks, Sam Simon, Matt Groening-, percebi que, no mínimo, seria um programa de qualidade. O fato de ser animado pelo menos o destacaria. Então aceitei o trabalho."
Até então Jean vinha trabalhando com Garry Shandling (conhecido por "Larry Sanders") e, antes disso, no "National Lampoon Magazine". Ele admite que era uma situação que só lhe apresentava dois resultados possíveis: ganhar ou ganhar. "Não era exatamente um risco. Estávamos dando um tempo de quatro meses entre uma temporada e outra do Garry Shandling, então tínhamos tempo. "Os Simpsons" estavam oferecendo empregos de dois dias por semana nos primeiros 13 episódios. Era a chance de entrar desde o começo numa coisa que acabou superando até meus sonhos mais desvairados."
Em 1989 havia cinco roteiristas. Hoje há 20 -"simplesmente os melhores da cidade". Com esse miniexército de cabeças, levar o conceito da primeira gargalhada até o produto pronto é praticamente uma operação militar. "Geralmente um ou dois dos roteiristas me propõem um episódio. Mas eu sou superexigente quanto às idéias que chegam a virar roteiro. Uma vez aprovada a idéia, o roteirista original a transforma num primeiro rascunho. Então o resto da equipe põe as mãos em cima e reescreve tudo quatro ou cinco vezes, antes de o elenco chegar a dar sequer uma olhada no material."

Processo de criação
"Nós ficamos o tempo todo fazendo modificações aqui e ali, fazendo pequenas mudanças nas "gags", enquanto o elenco acrescenta improvisos. Então o programa é enviado para os animadores, que criam uma versão de rascunho, conhecida como "animatic". Depois reescrevemos. Isso feito, enviamos a coisa toda à Coréia, onde fazem a animação final em cores. Entre a primeira idéia e o programa pronto, leva mais ou menos um ano."
Com essa demora toda, existe o risco de ocorrer algum imprevisto? "Claro que sim", diz Jean. "Escrevemos um episódio que incluía a União Soviética. Quando o episódio estava pronto para ir ao ar, a URSS já tinha deixado de existir. Tivemos que mudar tudo. Mas não fazemos episódios com elementos que vão perder o sentido em pouco tempo. Eles refletem tendências mais amplas. Fazemos piadas sobre a dificuldade de comprar drogas receitadas por médicos nos EUA, sobre o casamento entre gays ou o suicídio assistido. Tudo isso ainda vai ser assunto quente daqui a um ano."
É difícil imaginar a conservadora rede Fox curtindo o material sobre suicídio assistido. Como funciona essa relação? "Nunca tivemos problemas com a Fox", diz Jean diplomaticamente. "Eles têm espírito esportivo."
Ele prossegue: "Este programa não existiria sem a Fox. Quando começamos, só havia três redes abertas nos EUA. Alguém tinha que apostar US$ 13 milhões nos "Simpsons", e a Fox se dispôs a tentar algo novo e muito arriscado. Ela deixou o programa ter a liberdade que não desfrutaria em nenhuma outra rede".
"Agora, também é verdade que o programa rende dinheiro cada vez que vai ao ar nos EUA. Quando se contabilizam também as vendas no exterior e os DVDs, "Os Simpsons" ainda é um grande negócio. Mas, para que ele continue a ser sucesso comercial, é preciso que as pessoas continuem a gostar dele em termos artísticos."
Então o que esse guardião do legado de "O Simpsons" pensa da idéia de que o programa não é o mesmo desde os "anos dourados" das temporadas três a cinco? "Eu me lembro de ouvir comentários de que o programa vem decaindo desde a primeira ou segunda temporada", diz ele. "É a natureza humana. Existem muito poucas coisas culturais que as pessoas acham que estão melhores hoje do que foram no passado. Eu, pessoalmente, não percebo uma queda na qualidade."
Mas algo aconteceu, sim, entre as primeiras duas temporadas e as três seguintes: uma mudança de um programa centrado em Bart para o universo próprio de Homer. "As pessoas dizem isso, sim, mas foi uma coisa totalmente inconsciente. Começamos a fazer mais episódios baseados em Homer, só isso. Bart era e ainda é tremendamente popular, mas, quando estávamos propondo idéias, achávamos mais fácil pensar em histórias com Homer do que com Bart. Talvez seja porque um garoto de dez anos não tem uma vida tão rica quanto um homem adulto. Além disso, os roteiristas já têm idades mais perto da de Homer. Agora, ultimamente, estão surgindo mais episódios voltados a Abe [o pai de Homer]."
Al Jean parece querer desmentir sugestões de que haja algo maior por trás de "Os Simpsons". Para ele, o programa é apenas engraçado, nada mais. Pergunto o que ele pensa de toda a literatura filosófica e teológica envolvendo "Os Simpsons". "É verdade, dá para fazer um curso sobre os Simpsons em Berkeley", ele comenta, rindo. "Tudo bem, acho. Só quero ressaltar que o programa não tem nenhuma crença ou tendência religiosa comum, porque é produto de várias pessoas."

A filosofia dos Simpsons
"Se existe alguma postura que o programa defende, pode ser essa coisa de que existem enormes forças impessoais no mundo dispostas a destruir o sujeito pequeno. Mas o programa não tem posição formada a respeito do casamento gay, por exemplo. Fica a cargo do espectador decidir. Já ouvi pessoas dizerem que "Os Simpsons" é um jeito mais fácil de levar os estudantes a curtir filosofia do que fazê-los ler Schopenhauer e Nietzsche, mas não sei se isso quer dizer que somos uma coisa boa ou ruim."
O alto grau de expectativa em torno de "Os Simpsons" provoca ansiedade em Jean? "É uma coisa que assusta um pouco. O programa é tão querido. Não quero ser o sujeito que estará dirigindo o programa no dia em que ele perder essa coisa. Essa é a coisa mais assustadora na minha vida." É -, agora entendi por que o homenzinho engraçado no sofá ficou tão sério.


Tradução de Clara Allain


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