São Paulo, segunda-feira, 01 de agosto de 2005

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Frayn explora imaginação infantil

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Minha mãe é uma espiã alemã", ouve o garoto Stephen, e está dado o argumento para o novo romance do inglês Michael Frayn, a ser lançado neste mês pela Companhia das Letras. Estamos em plena 2ª Guerra Mundial, e o cenário é uma pequena vila do subúrbio londrino, cujo céu abandona a neblina e se recorta por um "emaranhado de trilhas heróicas de fumaça".
O narrador é o próprio Stephen, 50 anos mais tarde, reconstruindo na memória seus passos de menino. A este, por fim, mais especificamente a sua imaginação farta, é que caberá a construção do enredo de "Espiões", livro vencedor do prêmio Whitbread de melhor romance de 2003, na Inglaterra.
Espionando a espiã, e justificando o plural do título, estão Stephen e Keith, filho da supeita. Suas peripécias imaginárias, no entanto, ambos apenas semi-conscientes de que se trata simplesmente de uma brincadeira, revelarão mais do que o caráter da investigada: com sensibilidade e dor, farão um escrutínio da dilaceração das relações humanas na periferia de uma grande guerra, e um retrato impiedoso das dificuldades do tornar-se adulto.
Quanto à melancolia que atravessa essas infâncias, Frayn minimiza o valor do conflito entre países: "O que aflige Stephen é a confusão de ter de se comportar como esperam os seus pais e atender às expectativas de seus amigos e pares. As crianças vivem com intensidade essa dupla referência, e por isso sofrem".
A situação do protagonista corrobora e amplia didaticamente a opinião do autor: "Vinte vezes por dia, se você é um menino e tem esperanças de ser um homem, é chamado para ter coragem, para fazer um esforço ainda maior, para mostrar uma força que na verdade não tem", diz o narrador, avaliando à distância suas inseguranças infantis.
Quanto a essas inseguranças, Frayn, autor de mais de 30 romances e peças teatrais, entre elas "Copenhagen", não hesita em definir em "Espiões" sua obra mais autobiográfica e, talvez por isso, a melhor. "Quando se vai envelhecendo, é inevitável não olhar para trás, para a própria infância, e ter interesse por aquilo de que se escapou, aquilo que se transcendeu", diz o inglês, referindo-se à guerra e às situações que teve de enfrentar nessa vila onde morava.
É justamente no fluxo de lembranças, semelhante ao do narrador do livro, que Frayn descobre uma das matérias-primas de sua escrita. "Literatura é um exercício de selecionar o que parece importante, a partir de um massivo e interminável caos da vida que nos cerca. E uma das formas de fazê-lo é pela memória", afirma.
Memória e imaginação, é a partir dessas impalpáveis instâncias que se materializa a atmosfera da nefasta década de 1940, para todos e para Stephen. Deste, sabemos tudo, presente e passado, sentidos e pensamentos. Quanto a Frayn, seu desafio agora é transmutar tais abstrações mentais em gestos e palavras ditas, pois está transformando o romance em roteiro, para, em breve, a história chegar também aos cinemas.


Espiões
Autor: Michael Frayn
Tradutora: Nina Horta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (238 págs.)



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