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Frayn explora imaginação infantil
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
"Minha mãe é uma espiã alemã", ouve o garoto Stephen, e está
dado o argumento para o novo
romance do inglês Michael Frayn,
a ser lançado neste mês pela Companhia das Letras. Estamos em
plena 2ª Guerra Mundial, e o cenário é uma pequena vila do subúrbio londrino, cujo céu abandona a neblina e se recorta por
um "emaranhado de trilhas heróicas de fumaça".
O narrador é o próprio Stephen,
50 anos mais tarde, reconstruindo
na memória seus passos de menino. A este, por fim, mais especificamente a sua imaginação farta, é
que caberá a construção do enredo de "Espiões", livro vencedor
do prêmio Whitbread de melhor
romance de 2003, na Inglaterra.
Espionando a espiã, e justificando o plural do título, estão Stephen e Keith, filho da supeita.
Suas peripécias imaginárias, no
entanto, ambos apenas semi-conscientes de que se trata simplesmente de uma brincadeira,
revelarão mais do que o caráter da
investigada: com sensibilidade e
dor, farão um escrutínio da dilaceração das relações humanas na
periferia de uma grande guerra, e
um retrato impiedoso das dificuldades do tornar-se adulto.
Quanto à melancolia que atravessa essas infâncias, Frayn minimiza o valor do conflito entre países: "O que aflige Stephen é a confusão de ter de se comportar como esperam os seus pais e atender
às expectativas de seus amigos e
pares. As crianças vivem com intensidade essa dupla referência, e
por isso sofrem".
A situação do protagonista corrobora e amplia didaticamente a
opinião do autor: "Vinte vezes
por dia, se você é um menino e
tem esperanças de ser um homem, é chamado para ter coragem, para fazer um esforço ainda
maior, para mostrar uma força
que na verdade não tem", diz o
narrador, avaliando à distância
suas inseguranças infantis.
Quanto a essas inseguranças,
Frayn, autor de mais de 30 romances e peças teatrais, entre elas
"Copenhagen", não hesita em definir em "Espiões" sua obra mais
autobiográfica e, talvez por isso, a
melhor. "Quando se vai envelhecendo, é inevitável não olhar para
trás, para a própria infância, e ter
interesse por aquilo de que se escapou, aquilo que se transcendeu", diz o inglês, referindo-se à
guerra e às situações que teve de
enfrentar nessa vila onde morava.
É justamente no fluxo de lembranças, semelhante ao do narrador do livro, que Frayn descobre
uma das matérias-primas de sua
escrita. "Literatura é um exercício
de selecionar o que parece importante, a partir de um massivo e interminável caos da vida que nos
cerca. E uma das formas de fazê-lo é pela memória", afirma.
Memória e imaginação, é a partir dessas impalpáveis instâncias
que se materializa a atmosfera da
nefasta década de 1940, para todos e para Stephen. Deste, sabemos tudo, presente e passado,
sentidos e pensamentos. Quanto
a Frayn, seu desafio agora é transmutar tais abstrações mentais em
gestos e palavras ditas, pois está
transformando o romance em roteiro, para, em breve, a história
chegar também aos cinemas.
Espiões
Autor: Michael Frayn
Tradutora: Nina Horta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (238 págs.)
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