São Paulo, terça-feira, 01 de agosto de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Velhice transviada

Godard montou uma exposição no Pompidou para restar só a idéia do que ela poderia ter sido

"VIAGEM(NS) À Utopia", a exposição "catastrófica" que Jean-Luc Godard concebeu para o Centro Georges Pompidou, em Paris, e que termina no próximo dia 14, remete inevitavelmente a um livro póstumo de Edward Said, "On Late Style" (sobre o estilo tardio), que acaba de ser publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Convidado pelo Centro Pompidou a fazer uma exposição paralela ao ciclo retrospectivo integral dos seus filmes, Godard a tornou impossível, de modo a que dela só restasse a idéia do que poderia ter sido (mas não é), simbolizando assim o estado atual das artes: "No Pompidou, eles gostam é dos mortos", declarou o cineasta ao "Libération".
Editado a partir de um curso de Said na Universidade Columbia, em Nova York, "Late Style" retoma algumas idéias de Theodor Adorno para analisar o momento na obra de artistas como Beethoven, Jean Genet e Thomas Mann, entre outros, quando a proximidade (ou a consciência mais aguda) da morte permitiria abandonar as convenções do seu tempo para criar uma arte difícil, radical e irregular. A idade avançada não como pacificação, mas como radicalização do irreconciliável. "O estilo tardio é o que acontece quando a arte não abdica dos seus direitos em favor da realidade", escreve Said. E cita Adorno: "Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes".
"Tardio" é o que chega por último, mas também o avançado e o mais recente. Pelos dois pontos de vista, o sentido é de extemporaneidade, um descompasso com o seu tempo, em desacordo com o presente. Assim, os últimos trabalhos de Beethoven, à época obscuros e irreconciliáveis, na verdade anunciavam a modernidade na música.
Said ressalta o sentido trágico e político dessa condição, que pode ser associada à sua experiência pessoal, fora do lugar, como palestino nos Estados Unidos diante da proximidade da morte (o autor morreu de câncer, em 2003, aos 67 anos), e a uma forma de protesto: "O estado tardio é um tipo de exílio auto-imposto em relação ao que é geralmente aceitável (...). Ser tardio significaria, portanto, chegar atrasado para (e recusar) as recompensas que lhe são oferecidas por sua adequação à sociedade, o que inclui ser lido e facilmente compreendido por um grande número de pessoas".
Said faz o elogio do intempestivo não por ser difícil em si, mas por ser incongruente em relação ao que dele se espera dentro das normas do seu tempo: "Adorno é precisamente uma figura tardia, porque muito da sua obra militava ferozmente contra o seu próprio tempo". E nisso sobressai a exaltação do artista e do indivíduo que, aquém ou além do presente, resiste às identidades que lhe são impostas pelos que o cercam.
A propósito de Genet, Said escreve: "A identidade é o que nós nos impomos em nossas vidas como seres sociais, históricos, políticos e até mesmo espirituais. (...) A identidade é o processo pelo qual a cultura mais forte, e a sociedade mais desenvolvida, impõe-se violentamente sobre aqueles que, pelo mesmo processo identitário, são decretados povos inferiores. O imperialismo é a exportação da identidade". Não é por acaso que o multiculturalismo foi inventado pelos americanos.
Said associa Genet a Adorno, um ensaísta para quem o ensaio era uma forma de se manter "em permanente desacordo, contra tudo o que estivesse intelectualmente na moda". E volta a citar o filósofo: "A relevância contemporânea do ensaio é o anacronismo".
A exposição de Godard no Centro Pompidou é dividida em três salas, cada uma relacionada com um tempo: "Anteontem", "Ontem" e "Hoje". Em todas elas, porém, o que se vê são ruínas: restos de uma exposição que já teria terminado e estaria sendo desmontada ou o projeto de uma exposição ainda por montar. São tapumes, maquetes da exposição originalmente planejada, inscrições a caneta, rabiscos, citações (muitas delas geniais) em folhas de papel coladas nas paredes, no chão etc. Uma imensa instalação deliberadamente precária, onde se espalham dezenas de monitores, a exibir trechos de filmes, a maioria do passado.
Nessa precariedade, tudo é anacrônico. A exposição não corresponde a uma exposição, não corresponde ao presente, mas ao "antes" ou ao "depois". Se há nostalgia, é de um tempo que nunca existiu. O fracasso do projeto era o próprio projeto desse cineasta capaz de se reinventar em permanência antes de receber as recompensas do seu tempo. Um artista decidido a fazer da impossibilidade a sua obra tardia. E a seguir como "enfant terrible" aos 75 anos.


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