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BERNARDO CARVALHO
Velhice transviada
Godard montou uma exposição no Pompidou para restar só a idéia do que ela poderia ter sido
"VIAGEM(NS) À Utopia", a
exposição "catastrófica"
que Jean-Luc Godard
concebeu para o Centro Georges
Pompidou, em Paris, e que termina
no próximo dia 14, remete inevitavelmente a um livro póstumo de Edward Said, "On Late Style" (sobre o
estilo tardio), que acaba de ser publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Convidado pelo Centro Pompidou a fazer uma exposição paralela ao ciclo retrospectivo integral dos
seus filmes, Godard a tornou impossível, de modo a que dela só restasse
a idéia do que poderia ter sido (mas
não é), simbolizando assim o estado
atual das artes: "No Pompidou, eles
gostam é dos mortos", declarou o cineasta ao "Libération".
Editado a partir de um curso de
Said na Universidade Columbia, em
Nova York, "Late Style" retoma algumas idéias de Theodor Adorno
para analisar o momento na obra de
artistas como Beethoven, Jean Genet e Thomas Mann, entre outros,
quando a proximidade (ou a consciência mais aguda) da morte permitiria abandonar as convenções do
seu tempo para criar uma arte difícil, radical e irregular. A idade avançada não como pacificação, mas como radicalização do irreconciliável.
"O estilo tardio é o que acontece
quando a arte não abdica dos seus
direitos em favor da realidade", escreve Said. E cita Adorno: "Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes".
"Tardio" é o que chega por último,
mas também o avançado e o mais recente. Pelos dois pontos de vista, o
sentido é de extemporaneidade, um
descompasso com o seu tempo, em
desacordo com o presente. Assim, os
últimos trabalhos de Beethoven, à
época obscuros e irreconciliáveis, na
verdade anunciavam a modernidade na música.
Said ressalta o sentido trágico e
político dessa condição, que pode
ser associada à sua experiência pessoal, fora do lugar, como palestino
nos Estados Unidos diante da proximidade da morte (o autor morreu de
câncer, em 2003, aos 67 anos), e a
uma forma de protesto: "O estado
tardio é um tipo de exílio auto-imposto em relação ao que é geralmente aceitável (...). Ser tardio significaria, portanto, chegar atrasado para
(e recusar) as recompensas que lhe
são oferecidas por sua adequação à
sociedade, o que inclui ser lido e facilmente compreendido por um
grande número de pessoas".
Said faz o elogio do intempestivo
não por ser difícil em si, mas por ser
incongruente em relação ao que dele se espera dentro das normas do
seu tempo: "Adorno é precisamente
uma figura tardia, porque muito da
sua obra militava ferozmente contra
o seu próprio tempo". E nisso sobressai a exaltação do artista e do indivíduo que, aquém ou além do presente, resiste às identidades que lhe
são impostas pelos que o cercam.
A propósito de Genet, Said escreve: "A identidade é o que nós nos impomos em nossas vidas como seres
sociais, históricos, políticos e até
mesmo espirituais. (...) A identidade
é o processo pelo qual a cultura mais
forte, e a sociedade mais desenvolvida, impõe-se violentamente sobre
aqueles que, pelo mesmo processo
identitário, são decretados povos inferiores. O imperialismo é a exportação da identidade". Não é por acaso que o multiculturalismo foi inventado pelos americanos.
Said associa Genet a Adorno, um
ensaísta para quem o ensaio era uma
forma de se manter "em permanente desacordo, contra tudo o que estivesse intelectualmente na moda". E
volta a citar o filósofo: "A relevância
contemporânea do ensaio é o anacronismo".
A exposição de Godard no Centro
Pompidou é dividida em três salas,
cada uma relacionada com um tempo: "Anteontem", "Ontem" e "Hoje". Em todas elas, porém, o que se vê
são ruínas: restos de uma exposição
que já teria terminado e estaria sendo desmontada ou o projeto de uma
exposição ainda por montar. São tapumes, maquetes da exposição originalmente planejada, inscrições a
caneta, rabiscos, citações (muitas
delas geniais) em folhas de papel coladas nas paredes, no chão etc. Uma
imensa instalação deliberadamente
precária, onde se espalham dezenas
de monitores, a exibir trechos de filmes, a maioria do passado.
Nessa precariedade, tudo é anacrônico. A exposição não corresponde a uma exposição, não corresponde ao presente, mas ao "antes" ou ao
"depois". Se há nostalgia, é de um
tempo que nunca existiu. O fracasso
do projeto era o próprio projeto desse cineasta capaz de se reinventar
em permanência antes de receber as
recompensas do seu tempo.
Um artista decidido a fazer da impossibilidade a sua obra tardia. E a
seguir como "enfant terrible" aos 75
anos.
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