São Paulo, sábado, 1 de agosto de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTO
Em 'Arco-Íris', Pynchon entrelaça real e imaginário

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha


Num ensaio sobre paranóia e literatura, Leo Bersani, um dos mais celebrados críticos literários dos Estados Unidos, supõe que a fama estrepitosa, a partir de 1973, de um livro difícil como "O Arco-Íris da Gravidade", de Thomas Pynchon (finalmente publicado no Brasil com uma ótima tradução de Paulo Henriques Britto), se deve em parte à sua paranóia.
Mas só em parte, porque o próprio crítico é o primeiro a concordar que, para além de todas as explicações sociológicas e extraliterárias possíveis, este é, no mais rigoroso sentido da palavra, um livro extraordinário.
É verdade que também é -para usar uma formulação um tanto eufemística- um romance extremamente complexo (você nunca sabe ao certo se o que está lendo faz parte da realidade em que vivem os personagens ou dos delírios, sonhos, fantasias e alucinações de algum deles, que você também não pode determinar com absoluta certeza qual), e o fato de ter se transformado em culto para uma legião de jovens fãs, num mundo já dominado pela impostura do marketing e de uma literatura pop e fácil, torna o fenômeno ainda mais interessante.
Por um lado, Pynchon pode ser visto como um resquício hippie, com o seu ponto de vista conspiratório em que o indivíduo entra como cobaia nas mãos dos interesses econômicos e do poder de um cartel de grandes corporações, o que explicaria sua capacidade de seduzir um certo imaginário paranóico que ao final dos anos 60 esperava o seu messias e a publicação da sua bíblia.
A paranóia parece ter se tornado, nas últimas décadas, um gênero tipicamente americano, não só literário, mas cinematográfico, chegando até a diluição hollywoodiana. Uma forma de pensar o mundo pela conspiração, que poderia muito bem ser o resultado de uma revolta difusa, e no mais das vezes infantil, por parte de uma geração assombrada por uma realidade ao mesmo tempo corrupta e puritana, temperada pelo uso de anfetaminas e confrontada com a ameaça da guerra e com a culpa de representar uma potência para a qual a bomba atômica serve de caução não apenas simbólica.
Comparados, no entanto, à originalidade radical de um livro como "O Arco-Íris da Gravidade", autênticos e valorosos representantes do gênero, como Don DeLillo e Paul Auster, correm o risco de acabarem reduzidos a convencionais prosadores. Se a paranóia é o que tenta deduzir sentidos onde não há nenhum, no esforço de criar conexões inusitadas sob as aparências, eliminando toda possibilidade de acaso, Pynchon a leva ao extremo ao forçá-la, paradoxalmente, na loucura excessiva e hilariante dessas conexões, a não fazer mais sentido algum.
Em sua radicalidade cômica, "O Arco-Íris da Gravidade" faz a paranóia ir contra a própria paranóia. É quase impossível para o leitor separar o que há de objetivo do subjetivo, o real do imaginário, a ciência do sonho, a realidade narrativa (o que parece estar realmente acontecendo) da subjetividade dos personagens e do narrador (suas fantasias).
Tudo parece se dar nesse espaço que Pynchon chama de "interface", a partir de preceitos pavlovianos, onde a noção de opostos se dissolve e que por vezes lembra, mais que um estado de inconsciência, o universo inconsequente e de pesadelo dos desenhos animados ou dos quadrinhos.
Não é à toa que alguns fãs tenham chegado a esboçar, como guias de leitura, tentativas de resumo do livro na Internet, uma delas com o título significativo: "Algumas Coisas Que Acontecem (Mais ou Menos) em "O Arco-Íris da Gravidade'".
O tenente americano Tyrone Slothrop e o projeto de um foguete nazista são o que há de mais central nessa ficção descentralizada, cheia de personagens e desdobramentos (como se a escrita abrisse o cérebro de cada um deles, projetando para fora, em telas sucessivas, as paisagens imaginárias que se passam no interior de suas cabeças) e desvios que podem incluir até a narrativa de mortos invocados por processos mediúnicos.
Quando pequeno, Tyrone Slothrop havia sido usado como objeto de estudo por um cientista behaviorista de Harvard, que agora, ao final da Segunda Guerra Mundial, parece trabalhar para os alemães. O estudo dizia respeito às ereções do bebê Tyrone. Curiosamente, suas ereções de adulto servindo em Londres sob o bombardeio alemão parecem anunciar, com antecedência, o local onde os mísseis nazistas vão cair na cidade.
Considerado um fenômeno incompreensível, mas de substancial utilidade para os interesses dos cartéis industriais por trás da guerra ("no fundo uma operação de compra e venda"), o herói passa a ser seguido e observado por todos os lados, sob uma atmosfera que tem muito de Fritz Lang, ao longo de sua trajetória até a Zona (a Alemanha do pós-guerra) em busca de uma verdade -se é que se pode continuar falando nesses termos- sobre si mesmo.
"O Arco-Íris da Gravidade" (o título faz menção à trajetória dos foguetes) poderia ser lido como a fantasia infantil e um tanto narcisista de um garoto americano obcecado pelo próprio pênis (é evidente a simbologia fálica dos foguetes, ainda mais em sua associação com as ereções do protagonista) e bombardeado pela cultura pop e por uma quantidade de informações históricas e políticas a que não consegue dar um corpo unitário e lógico.
Mas seria reduzir esse romance avesso às interpretações (por permitir uma infinidade, e as mais díspares) a um ponto de vista psicanalítico simplista e a um mundo ao qual ele tenta oferecer saídas.
"O Arco-Íris da Gravidade" é desses livros grandiosos e generosos, que abrem para o leitor caminhos impensados, não somente novas possibilidades de fabulação, mas de criação de novos mundos, ainda que seja apenas por promover, em sua exuberância narrativa, o entendimento libertário de que novos mundos e pontos de vista sempre podem ser criados.


Livro: O Arco-Íris da Gravidade Autor: Thomas Pynchon Lançamento: Companhia das Letras Quanto: R$ 44 (792 págs.)



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