|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
"2 Filhos de Francisco" e meu gosto pela música sertaneja
Confesso que sempre gostei
de música country.
Na trilha sonora da minha infância, na Itália do começo dos
anos 50, destacavam-se duas músicas do grande Roy Acuff: "Night
Train to Memphis" (o trem noturno para Memphis), que é uma
invitação à viagem, e "That's
what Makes the Jukebox Play" (é
isto o que faz tocar a jukebox),
que é uma arranca-lágrimas. Penei para transcrever as letras; depois disso, cantava junto (para
desespero de meus familiares).
Mais tarde, gostando do cinema
western, fui tomado de paixão
por Gene Autry. Traduzir western
por bangue-bangue é péssimo: na
temática western, como na
country, o que importa não são os
tiros, mas a vontade de colocar o
pé na estrada, as insídias do caminho (bandidos, neve e sol do
deserto) e, é claro, a saudade.
Depois de um período em que
preferi a canção italiana e o pop,
descobri Bob Dylan, em 1964, com
"The Times They Are A-Changin'" (os tempos estão mudando),
primeiro hino da contracultura.
Bob Dylan não é só um cantor
country, mas foi graças a ele (e a
James Taylor -"Sweet Baby James" ainda é um de meus discos
preferidos) que voltei à minha
paixão da infância. Desde então,
sou fã de Willie Nelson.
Logicamente, uma vez instalado no Brasil no fim dos anos 80, a
música sertaneja me conquistou.
Mas meu gosto era inconfessável:
nos meios que eu freqüentava, escutar Leandro e Leonardo e, logo
depois, Zezé di Camargo e Luciano era considerado um sinal de
extrema vulgaridade musical.
Minha simpatia pelo country
americano era aceitável, mas gostar dos sertanejos nacionais, isso
era outra história.
Ora, o Brasil, que eu saiba, é o
único país que produziu e produz
uma música country (a sertaneja) que rivaliza com o country
norte-americano. Há razões para
isso: o tamanho e a diversidade
do território (que ainda comporta áreas selvagens), o passado
bandeirante, a origem de larga
parte do povo na saudosa viagem
do imigrante e a urbanização
acelerada, que acarreta uma brutal mobilidade geográfica e social
(mais viagens e mais saudades).
Esse repertório temático country
encontrou, no Brasil, o gênio musical que todos verificam na riqueza da MPB.
Aposto que, se nossas duplas
sertanejas cantassem em inglês,
elas triunfariam em Nashville como triunfam em Barretos. Mas
sempre encontro alguém para me
"explicar" que a música sertaneja
é "caipira", ou seja, não toca
aquelas cordas universais do sentimento que fazem a grandeza do
country americano.
Pois bem, os que acreditam na
"inferioridade" da música sertaneja deveriam assistir a "2 Filhos
de Francisco", o esplêndido filme
de Breno Silveira.
A história de Zezé di Camargo e
Luciano não é apenas comovedora: ela é a quinta-essência do espírito country (ou sertanejo, tanto
faz). Há a roça da infância, que,
na saudade da lembrança, aparece como paraíso perdido, embora
fosse pobre e obcecada pela vontade de ir embora (é o desejo "louco" de Francisco para seus filhos).
Há, na dureza da vida, o constante consolo da música, não como
ocasião de devaneio, mas como
vontade de dar à experiência a
intensidade de um vibrato. Há a
estranheza do encontro com a cidade, a dor de uma mudança que
troca a miséria tranqüila do campo pela inquieta miséria urbana.
Há a errância do menestrel pelo
mundo, que cobra um preço, às
vezes, fatal. Há a dificuldade de
amar e a obstinada permanência
dos afetos básicos, familiares.
Em suma, a história da dupla é
um repertório quase completo dos
temas de sempre da música
country, que canta os sentimentos
dos desterrados, ou seja, de todos
nós, que vivemos na viagem entre
a saudade e a esperança.
Mais uma questão: na história
de Zezé e Luciano, é crucial o desejo de Francisco que os filhos se
tornassem músicos e que a música os levasse longe, na vida e no
mundo. É um pai que tem precedentes ilustres -entre eles, o pai
de Mozart, o qual tinha uma vantagem: podia pagar as aulas para
o filho. Francisco trocou um porco, uma colheita, sei lá quantos
queijos e seu revólver por um violão e uma sanfona para os filhos.
Será que ele era "doido", como
pensava o sogro?
Em geral, não se aconselha os
pais a terem um desejo tão definido sobre o futuro dos filhos. No
entanto, o drama de muitos pais é
que não conseguem transmitir
aos filhos nem sequer a capacidade de desejar (seja lá o que for). E
o fato é que Francisco conseguiu
passar sua paixão para Mirosmar
(Zezé), Emival e Welson (Luciano). Foi um fardo para eles? Pois
é, desejar não é de graça.
Enfim, é banal ler, em textos de
auto-ajuda, que, à força de desejar, a gente consegue: quem não
larga o osso é recompensado um
dia. Aviso: não é verdade. A "loucura" de Francisco e a paixão que
ele transmitiu a seus filhos não
garantiam nada: eles poderiam
fracassar. A intensidade do desejo
não leva necessariamente ao sucesso.
Mesmo assim, há uma boa razão para desejar com força: quase
sempre, quem não se atreve a
querer "doidamente" sofre da
única culpa que a gente nunca se
perdoa, a culpa de não ter ousado
viver segundo nosso desejo.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Entrevista: Glória Perez ri de seus próprios "absurdos" Próximo Texto: Panorâmica - Livros: Prêmio Portugal Telecom anuncia finalistas Índice
|