São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"O Sabor da Melancia"

Tsai Ming-liang faz filme contagiante carregado de gostos estranhos

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Sabor da Melancia" começa por este título brasileiro inusitado. É um nome antipoético. Adivinhamos no filme algo do grotesco que ele carrega -e o espectador não será decepcionado nessa expectativa: numa das primeiras cenas há uma mulher, pernas abertas, com uma melancia sobre a vagina.
Um homem entra em quadro, por baixo, e começa a tocar a melancia como se fosse uma vagina. A mulher excita-se como se fosse... a melancia! Existe o sexo, abundante, mas algo estranho se passa com ele.
Logo depois saberemos que estamos cercados de melancias. A seca assola Taiwan. Só se bebe água de garrafa. Uma mulher leva uma melancia para casa em sua barriga.
Estaria grávida de uma melancia? Nessa altura já nos perguntamos o que é, afinal, este filme de Tsai Ming-liang: um drama, uma comédia? Podemos tentar relacioná-lo a outros filmes chineses. Mas, só de Chinas há três, para efeito de cinema.
A mulher da melancia encontra um homem. Pergunta-lhe se ele não vendia relógios. Ele diz que sim. É verdade, mas isso foi em outro filme. Esse Tsai deve estar me gozando. Os dois fazem amizade. Juntos, perseguem caranguejos pela cozinha e depois os almoçam. Não se falam, quase. Mas normalmente não se fala nesses filmes. Come-se a melancia, onde, por trás do sabor, há o segundo sabor: de água. A mulher está sozinha em sua casa.
Em sua cama, vista através de uma lente grande-angular: os pés enormes. Tenta dormir, mas é impossível, já que ouve os gritos de gozo de outra mulher.
Estamos por aí quando entra um número musical. Drama, comédia, musical, pornô: o que será isso? Outro número musical. Quatro mulheres diante de uma estátua de bronze. Elas proclamam amor ao homem ideal. O homem ideal é o da estátua, risonho e solene.
Tsai Ming-liang toma liberdades com tudo: com Taiwan, com o amor, com a água (ou a falta de). Com o cinema, sobretudo. Joga seu espectador de um lado para o outro, parece não fazer questão de ser compreendido. Mas existe ali uma energia evidente, contagiante.
Por fim as coisas ficam mais claras. No prédio onde mora a mulher (grávida da melancia) roda-se um filme pornô, da qual seu amigo é o protagonista. Se a melancia é um fruto cujo gosto final é o da água, a ela corresponde o sexo como pornografia. Não como existência, mas como morte ou catalepsia
Não como presença, mas como ausência e exercício trabalhoso. Que mundo é esse de Ming-liang e de "O Sabor da Melancia"? Um mundo em que as pessoas se cruzam sem que nenhuma relação se estabeleça, em que se amam estátuas ou imagens grotescas. Mundo estranho, amargo, ao que parece.
Cheio de humor, também -negro, eventualmente. Um filme carregado de gostos, que se mostra aos poucos, preserva seu sentido. Um filme para ver e rever.

O SABOR DA MELANCIA
     Direção:
Tsai Ming-liang
Produção: Taiwan/França, 2005
Com: Lee Kang-Sheng, Lu Yi-Ching
Quando: em cartaz nos cines Reserva Cultural, Espaço Unibanco e circuito


Texto Anterior: Casseta faz humor para público mais amplo
Próximo Texto: Crítica/"Casseta & Planeta - Seus Problemas Acabaram!!!": Apesar dos acertos, humoristas criam comédia de pouco riso espontâneo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.