|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"O Sabor da Melancia"
Tsai Ming-liang faz filme contagiante carregado de gostos estranhos
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"O
Sabor da Melancia" começa por este título brasileiro
inusitado. É um nome antipoético. Adivinhamos no filme algo
do grotesco que ele carrega -e
o espectador não será decepcionado nessa expectativa: numa das primeiras cenas há uma
mulher, pernas abertas, com
uma melancia sobre a vagina.
Um homem entra em quadro,
por baixo, e começa a tocar a
melancia como se fosse uma
vagina. A mulher excita-se como se fosse... a melancia! Existe
o sexo, abundante, mas algo estranho se passa com ele.
Logo depois saberemos que
estamos cercados de melancias. A seca assola Taiwan. Só se
bebe água de garrafa. Uma mulher leva uma melancia para casa em sua barriga.
Estaria grávida de uma melancia?
Nessa altura já nos perguntamos o que é, afinal, este filme
de Tsai Ming-liang: um drama,
uma comédia? Podemos tentar
relacioná-lo a outros filmes
chineses. Mas, só de Chinas há
três, para efeito de cinema.
A mulher da melancia encontra um homem. Pergunta-lhe
se ele não vendia relógios. Ele
diz que sim. É verdade, mas isso
foi em outro filme. Esse Tsai
deve estar me gozando. Os dois
fazem amizade. Juntos, perseguem caranguejos pela cozinha
e depois os almoçam. Não se falam, quase. Mas normalmente
não se fala nesses filmes. Come-se a melancia, onde, por
trás do sabor, há o segundo sabor: de água. A mulher está sozinha em sua casa.
Em sua cama, vista através de uma lente
grande-angular: os pés enormes. Tenta dormir, mas é impossível, já que ouve os gritos
de gozo de outra mulher.
Estamos por aí quando entra
um número musical. Drama,
comédia, musical, pornô: o que
será isso? Outro número musical. Quatro mulheres diante de
uma estátua de bronze. Elas
proclamam amor ao homem
ideal. O homem ideal é o da estátua, risonho e solene.
Tsai Ming-liang toma liberdades com tudo: com Taiwan,
com o amor, com a água (ou a
falta de). Com o cinema, sobretudo. Joga seu espectador de
um lado para o outro, parece
não fazer questão de ser compreendido. Mas existe ali uma
energia evidente, contagiante.
Por fim as coisas ficam mais
claras. No prédio onde mora a
mulher (grávida da melancia)
roda-se um filme pornô, da
qual seu amigo é o protagonista. Se a melancia é um fruto cujo gosto final é o da água, a ela
corresponde o sexo como pornografia. Não como existência,
mas como morte ou catalepsia
Não como presença, mas como
ausência e exercício trabalhoso. Que mundo é esse de Ming-liang e de "O Sabor da Melancia"? Um mundo em que as
pessoas se cruzam sem que nenhuma relação se estabeleça,
em que se amam estátuas ou
imagens grotescas. Mundo estranho, amargo, ao que parece.
Cheio de humor, também -negro, eventualmente. Um filme
carregado de gostos, que se
mostra aos poucos, preserva
seu sentido. Um filme para ver
e rever.
O SABOR DA MELANCIA
Direção: Tsai Ming-liang
Produção: Taiwan/França, 2005
Com: Lee Kang-Sheng, Lu Yi-Ching
Quando: em cartaz nos cines Reserva Cultural, Espaço Unibanco e circuito
Texto Anterior: Casseta faz humor para público mais amplo Próximo Texto: Crítica/"Casseta & Planeta - Seus Problemas Acabaram!!!": Apesar dos acertos, humoristas criam comédia de pouco riso espontâneo Índice
|