São Paulo, terça, 1 de setembro de 1998

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Puseram ketchup no caviar do Gorbatchov

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Ai, que saudades de Gorbatchov!... Melhor dizendo, que saudades do mundo que ele pensou em construir, agora que a Rússia quebrou, e o mundo pode ir junto, por causa da estupidez do ocidente "liberal".
Gorbatchov, com seu sorriso manso, seu discreto "charme", foi o último grande estadista do século, tentando corajosamente encarnar a contradição entre o socialismo e o capitalismo.
Gorbatchov tinha um sinal de nascença na testa, um desenho vermelho que lembrava um mapa-múndi. Algum profeta (quem? Nostradamus? São João?) andou dizendo que o emissário do fim dos tempos viria com uma marca rubra na testa. Será que foi ele?
Na realidade, os EUA nunca entenderam o bom "Gorba". Viram nele apenas um comunista arrependido, quase um desertor. E, no entanto, esse homem foi o único que nos deu a esperança de se casarem estes dois produtos do racionalismo do século 18: o socialismo e a democracia representativa. Ele acreditou numa "terceira via" para o impasse do mundo dividido entre um socialismo burocratizado, paralisado e um capitalismo bruto e fóbico. Ele acabou com paranóia anticomunista.
A opinião pública americana viu com delícia esse homem surgir com sua bela mulher, Raissa, formada em filosofia, sorridente (diferente das tristes barangas soviéticas que vinham antes com Krushchev e outros...), e entendeu que eles vinham em busca do que o ocidente tinha de melhor: a democracia como a entendeu um Tocqueville, o lado iluminista da América, o lado libertário, o lado criativo e veloz da América.
Gorbatchov era um duplo utópico: ele achava que poderia democratizar o socialismo e dar ao capitalismo um pouco do espírito do socialismo original, relíquia longínqua, depois de décadas de stalinismo e burocracia. Mas, em política, a "nuance" é sempre vista como "frescura" ou debilidade. As "ententes" são vividas como estratégias provisórias antes da dominação.
E Gorbatchov caiu, pedindo desesperadamente ajuda e racionalidade aos chefes de Estado do G-7, implorando apoio para as reformas soviéticas, se não me engano, na época, a quantia de US$ 7 bilhões. Eu via no brilho dos olhos dos outros chefes de Estado o orgulho fascinado de ter o "grande inimigo vermelho" ali, humilde e palpável, como um joão-ninguém, tentando levantar um "papagaio" no banco.
Os líderes capitalistas ficaram com uma inveja danada dele, de seu sucesso, de seu sorriso que encantou o mundo, de sua pureza de fazer autocrítica diante do Ocidente. Só Gorbatchov entendeu o mundo moderno. "Gorba" era o único filósofo que tinham importância, porque era um filósofo no poder, com 20 mil ogivas nucleares na ponta do dedo.
Filosofar na impotência é mole; o "novo" era aquele superpotente falando em revisão de certezas. Era um romântico e transformaram-no num babaca. Não tiveram compaixão dele nem da racionalidade humanista que ele tentava. Ficou claro, nessa época, que não há meias vitórias para americanos; só vitórias totais; não há "meio mercado", só mercado total, não há consenso nem acordo, porque a memória é sempre fraca. Como os Bourbons, "ninguém esqueceu nada nem aprendeu nada".
A verdade terrível é que onde o Gorbatchov abria um espaço democrático, os capitalistas americanos só viram abertura de mercados. Viram o fenômeno Gorbatchov apenas como uma chance de vender hambúrgueres na Praça Vermelha, de exportar coca-cola, Michael Jacksons e jeans.
Democracia para americano, no duro mesmo, é liberdade para vender sem fronteiras; aqueles papos do tempo do Jefferson e do Adams e do Hamilton ninguém lembra mais, só nos memoriais de Washington, escritos no mármore. Foi com uma ponta de sadismo que a grande crise da União Soviética foi observada pelos presidentes e banqueiros. Mesmo nas visitas oficiais havia sempre um pensamento não dito no ar: "Viu? Bem feito!... Quem mandou ser comunista? Agora, sofra..." Acharam que Gorbatchov e seu revisionismo era apenas a prova do triunfo do neoliberalismo mais "laisser-fairista", mais canalha.
A América nunca entendeu pensamentos mais genéricos. A "América corporativa" só pensa a curto prazo; a longo prazo só é usado para enrolar emergentes babacas: "Um dia, as riquezas "escorrerão' para vocês mais pobres... desde que se abram para nós". Só pensam em nos "desregular" e "abrir" para dominar.
Lembro-me de meu horror, na época, quando o presidente Bush foi visitar a URSS e fez diante do mundo inteiro uma exibição de grossura capitalista em cima do pobre "Gorba". Bush foi arrogante, exigindo medidas soviéticas contra Cuba, num discurso dentro do Kremlin, cheio de dedos espetados, palavras rudes diante de um Gorbatchov pálido de humilhação.
A estupidez de Bush, como a dos covardes líderes europeus como foi inesquecível, num dos mais importantes momentos do século 20. A União Soviética querendo diálogo e sendo humilhada por ignorantes imediatistas, enquanto a direita comunista, os militaristas do "politburo" planejavam um golpe regressivo, stalinista. A falta de sensibilidade das nações para com esse momento raro foi repulsiva.
Todo o esforço gigantesco de uma crítica-prática ao totalitarismo foi vivenciada pelo Ocidente como uma vitória de Milton Friedman e da "trickle down economics". Isso foi imperdoável e, talvez, ali, nosso destino tenha se traçado. Enquanto Gorbatchov fazia uma "perestroika" lá dentro, nenhuma "perestroika" foi feita aqui fora. Capitalista não faz autocrítica. Eles são perfeitos, o "erro" só está "fora" da América. Assim pensa o lado "republicano" e grosso da vida. E a tentativa de golpe militar se deu, o bêbado louco do Ieltsin subiu e a "nova" Rússia nasceu das mãos da "máfia" mais escrota e dos conselhos dos economistas de Chicago, que se mudaram para lá.
E agora, o Ocidente está como o diabo gosta. Sem inimigos não sabiam como viver. E agora já têm o Islã e a Rússia falida, depois de castrarem o sucedâneo de Gorbatchov, que é o Clinton, com seu pintinho narcisista, mas com um desejo de entender a crise global. E, agora, estamos sendo arrojados de volta para 1949, para a "guerra fria - back to the future". A Otan se fecha em volta da Rússia, para americano vender arma, a CIA escova seus ternos cinzas e a vida voltará a sorrir para o Pentágono. A deliciosa paranóia com seu mundo cheio de certezas está de volta.
Agora, vamos todos pagar mais caro que os US$ 7 bilhões que ele pediu em 90. A Rússia descobriu a delícia da chantagem atômica. Moratória com bombas nucleares é irresistível. Atrás dela virão a China, o Paquistão, Índia e Oriente em geral. Bem feito. Gorbatchov ofereceu uma grandeza nunca entendida pelos americanos: serviu caviar e puseram ketchup em cima.



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