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Puseram ketchup no caviar do Gorbatchov
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Ai, que saudades de Gorbatchov!... Melhor dizendo, que
saudades do mundo que ele
pensou em construir, agora
que a Rússia quebrou, e o
mundo pode ir junto, por causa da estupidez do ocidente "liberal".
Gorbatchov, com seu sorriso
manso, seu discreto "charme",
foi o último grande estadista
do século, tentando corajosamente encarnar a contradição
entre o socialismo e o capitalismo.
Gorbatchov tinha um sinal
de nascença na testa, um desenho vermelho que lembrava
um mapa-múndi. Algum profeta (quem? Nostradamus? São
João?) andou dizendo que o
emissário do fim dos tempos
viria com uma marca rubra na
testa. Será que foi ele?
Na realidade, os EUA nunca
entenderam o bom "Gorba".
Viram nele apenas um comunista arrependido, quase um
desertor. E, no entanto, esse
homem foi o único que nos deu
a esperança de se casarem estes
dois produtos do racionalismo
do século 18: o socialismo e a
democracia representativa. Ele
acreditou numa "terceira via"
para o impasse do mundo dividido entre um socialismo burocratizado, paralisado e um
capitalismo bruto e fóbico. Ele
acabou com paranóia anticomunista.
A opinião pública americana
viu com delícia esse homem
surgir com sua bela mulher,
Raissa, formada em filosofia,
sorridente (diferente das tristes barangas soviéticas que vinham antes com Krushchev e
outros...), e entendeu que eles
vinham em busca do que o ocidente tinha de melhor: a democracia como a entendeu um
Tocqueville, o lado iluminista
da América, o lado libertário,
o lado criativo e veloz da América.
Gorbatchov era um duplo
utópico: ele achava que poderia democratizar o socialismo
e dar ao capitalismo um pouco
do espírito do socialismo original, relíquia longínqua, depois
de décadas de stalinismo e burocracia. Mas, em política, a
"nuance" é sempre vista como
"frescura" ou debilidade. As
"ententes" são vividas como estratégias provisórias antes da
dominação.
E Gorbatchov caiu, pedindo
desesperadamente ajuda e racionalidade aos chefes de Estado do G-7, implorando apoio
para as reformas soviéticas, se
não me engano, na época, a
quantia de US$ 7 bilhões. Eu
via no brilho dos olhos dos outros chefes de Estado o orgulho
fascinado de ter o "grande inimigo vermelho" ali, humilde e
palpável, como um joão-ninguém, tentando levantar um
"papagaio" no banco.
Os líderes capitalistas ficaram com uma inveja danada
dele, de seu sucesso, de seu sorriso que encantou o mundo, de
sua pureza de fazer autocrítica
diante do Ocidente. Só Gorbatchov entendeu o mundo moderno. "Gorba" era o único filósofo que tinham importância, porque era um filósofo no
poder, com 20 mil ogivas nucleares na ponta do dedo.
Filosofar na impotência é
mole; o "novo" era aquele superpotente falando em revisão
de certezas. Era um romântico
e transformaram-no num babaca. Não tiveram compaixão
dele nem da racionalidade humanista que ele tentava. Ficou
claro, nessa época, que não há
meias vitórias para americanos; só vitórias totais; não há
"meio mercado", só mercado
total, não há consenso nem
acordo, porque a memória é
sempre fraca. Como os Bourbons, "ninguém esqueceu nada
nem aprendeu nada".
A verdade terrível é que onde
o Gorbatchov abria um espaço
democrático, os capitalistas
americanos só viram abertura
de mercados. Viram o fenômeno Gorbatchov apenas como
uma chance de vender hambúrgueres na Praça Vermelha,
de exportar coca-cola, Michael
Jacksons e jeans.
Democracia para americano,
no duro mesmo, é liberdade
para vender sem fronteiras;
aqueles papos do tempo do Jefferson e do Adams e do Hamilton ninguém lembra mais, só
nos memoriais de Washington,
escritos no mármore. Foi com
uma ponta de sadismo que a
grande crise da União Soviética foi observada pelos presidentes e banqueiros. Mesmo
nas visitas oficiais havia sempre um pensamento não dito
no ar: "Viu? Bem feito!... Quem
mandou ser comunista? Agora,
sofra..." Acharam que Gorbatchov e seu revisionismo era
apenas a prova do triunfo do
neoliberalismo mais "laisser-fairista", mais canalha.
A América nunca entendeu
pensamentos mais genéricos. A
"América corporativa" só pensa a curto prazo; a longo prazo
só é usado para enrolar emergentes babacas: "Um dia, as riquezas "escorrerão' para vocês
mais pobres... desde que se
abram para nós". Só pensam
em nos "desregular" e "abrir"
para dominar.
Lembro-me de meu horror,
na época, quando o presidente
Bush foi visitar a URSS e fez
diante do mundo inteiro uma
exibição de grossura capitalista em cima do pobre "Gorba".
Bush foi arrogante, exigindo
medidas soviéticas contra Cuba, num discurso dentro do
Kremlin, cheio de dedos espetados, palavras rudes diante
de um Gorbatchov pálido de
humilhação.
A estupidez de Bush, como a
dos covardes líderes europeus
como foi inesquecível, num dos
mais importantes momentos
do século 20. A União Soviética
querendo diálogo e sendo humilhada por ignorantes imediatistas, enquanto a direita
comunista, os militaristas do
"politburo" planejavam um
golpe regressivo, stalinista. A
falta de sensibilidade das nações para com esse momento
raro foi repulsiva.
Todo o esforço gigantesco de
uma crítica-prática ao totalitarismo foi vivenciada pelo
Ocidente como uma vitória de
Milton Friedman e da "trickle
down economics". Isso foi imperdoável e, talvez, ali, nosso
destino tenha se traçado. Enquanto Gorbatchov fazia uma
"perestroika" lá dentro, nenhuma "perestroika" foi feita
aqui fora. Capitalista não faz
autocrítica. Eles são perfeitos,
o "erro" só está "fora" da América. Assim pensa o lado "republicano" e grosso da vida. E a
tentativa de golpe militar se
deu, o bêbado louco do Ieltsin
subiu e a "nova" Rússia nasceu
das mãos da "máfia" mais escrota e dos conselhos dos economistas de Chicago, que se
mudaram para lá.
E agora, o Ocidente está como o diabo gosta. Sem inimigos não sabiam como viver. E
agora já têm o Islã e a Rússia
falida, depois de castrarem o
sucedâneo de Gorbatchov, que
é o Clinton, com seu pintinho
narcisista, mas com um desejo
de entender a crise global. E,
agora, estamos sendo arrojados de volta para 1949, para a
"guerra fria - back to the future". A Otan se fecha em volta
da Rússia, para americano
vender arma, a CIA escova
seus ternos cinzas e a vida voltará a sorrir para o Pentágono.
A deliciosa paranóia com seu
mundo cheio de certezas está
de volta.
Agora, vamos todos pagar
mais caro que os US$ 7 bilhões
que ele pediu em 90. A Rússia
descobriu a delícia da chantagem atômica. Moratória com
bombas nucleares é irresistível.
Atrás dela virão a China, o Paquistão, Índia e Oriente em geral. Bem feito. Gorbatchov ofereceu uma grandeza nunca entendida pelos americanos: serviu caviar e puseram ketchup
em cima.
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