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MARCELO COELHO
A arte mais real que a realidade
Fiquei tão encantado -não,
encantado não é o termo. Fiquei
tão feliz com o filme "A Vida Sonhada dos Anjos", do francês
Erick Zonca, que será difícil escrever algo que preste a respeito. Como todos sabem, jornalismo funciona mais quando é do contra.
Justamente, o filme vive do confronto entre duas amigas. Uma,
que é "do contra", chamada Marie (Natacha Régnier). Está sempre de mau humor, parece vocacionada a ser infeliz. Basta encontrar um possível namorado para
que se torne agressiva. Há pessoas
assim: cada frase que pronunciam
é uma gafe, um erro, uma violência involuntária e, ao mesmo tempo, consciente.
Marie é desse tipo. Mas, morando no mesmo apartamento, está
Isabelle (Élodie Bouchez). Para
essa menina sem eira nem beira, é
como se cada ser humano fosse
motivo de festa. Ela gosta das pessoas: também isso é uma vocação.
Elas vivem de trabalhos temporários, têm cerca de 20 anos, não
sabem o que fazer da vida. Não
sou capaz de prosseguir. Já estou
falando das duas como se fossem
pessoas reais, não personagens.
Élodie Bouchez é um sonho que
já apareceu no filme "Les Roseaux
Sauvages". O título foi traduzido
aqui como "Rosas Selvagens", o
que é um erro ("roseaux" significa
"juncos"), mas é também um
acerto, porque essa atriz tem muito de rosa selvagem mesmo, numa
folhagem algo rechonchuda de
adolescente a quem não faltam
espinhos e ímpetos.
Em "A Vida Sonhada dos Anjos" ela está quase feia. Como se a
feiúra fosse um capricho de sua
personalidade. E que personalidade! Isabelle é ao mesmo tempo
inconsequente e ética. Segue o dever como se tudo se passasse num
parque de diversões. Rompe com
o hedonismo da sociedade de consumo, mas guarda desse hedonismo o sabor (falso, que ela torna
verdadeiro) da liberdade.
Sua companheira, Marie, é
mais magra e loira. Natacha Régnier encena aqui um espírito de
revolta e de inacessibilidade. É a
jovem que, sendo "do contra",
não sabe mais contra quem está.
Por isso mesmo, apaixona-se, entrega-se à primeira promessa de
amor que aparecer.
É como se o diretor, Erick Zonca, estivesse fazendo o contraponto entre duas formas de credulidade. A credulidade otimista, vital, vivida por Élodie Bouchez, e a
credulidade frágil, ressentida, da
personagem de Natacha Régnier,
pronta a cair em qualquer armadilha na medida mesma em que é
tão desconfiada.
O fato é que "A Vida Sonhada
dos Anjos" triunfa sobre outra
credulidade: a do espectador, do
crítico. Vejo-me falando das personagens do filme como se fossem
reais. Mas é disto que se trata.
O grupo Dogma 95 tenta se contrapor a Hollywood com um decálogo técnico, no qual se proíbem
efeitos especiais, além de interditos quanto à trilha sonora, à fotografia etc. Falta avisar que esse
decálogo é, ele mesmo, um efeito
especial. Trata-se de uma mercadologia de alto nível. Nada do
que esses cineastas dinamarqueses realizam se aproxima do real.
Filmes como "Festa de Família"
ou "Os Idiotas" não passam de
documentários fictícios, confundindo o sensacionalismo com o
real. Sensacionalismo contido,
por certo, face aos exageros americanos. Mas esses filmes são,
acho, um Ratinho dinamarquês.
No caso de "A Vida Sonhada
dos Anjos", atinge-se uma realidade além da caricatura. Seria
muito pobre comparar o filme a
"Shopping & Fucking", peça que
esteve há pouco em cartaz no
Sesc, que pretende retratar o cotidiano dos "jovens". Nessa peça, o
que funciona como situação dramática é a dependência de drogas, o poder do mercado etc. Fenômenos que se contrapõem mecanicamente à clássica (e pós-moderna) "falta de rumo" da juventude.
Como disse Nelson de Sá em sua
crítica à peça, algo do original inglês não se transpõe direito para a
realidade brasileira. O lúmpen
juvenil é de classe média na Inglaterra, ao passo que no Brasil é
de classe baixa. Aqui, o "shopping" é uma atividade careta e
integrada, enquanto no Primeiro
Mundo tem o estatuto do vício,
da perversão.
"A Vida Sonhada dos Anjos"
não entra nessa armadilha pós-moderna. Não se propõe ser um
diagnóstico do "pensamento da
juventude". É atual, mas não
quer ser "atual". É "realista", mas
de certo modo anula o "ismo" da
coisa, para ser simplesmente real.
E milagroso também: mas não
posso contar o fim do filme.
Se é real ou não, nunca saberemos. Basta dizer que Marie e Isabelle, que Natacha e Élodie, são
pessoas mais consistentes e apaixonantes do que as que estamos
acostumados a encontrar. E,
quando a arte consegue ao mesmo tempo ser mais apaixonante e
real do que a realidade, fico encantado e feliz. Muito mais do
que, como o Dogma 95, que se
pretende real além da conta.
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