São Paulo, Quarta-feira, 01 de Setembro de 1999
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MARCELO COELHO
A arte mais real que a realidade

Fiquei tão encantado -não, encantado não é o termo. Fiquei tão feliz com o filme "A Vida Sonhada dos Anjos", do francês Erick Zonca, que será difícil escrever algo que preste a respeito. Como todos sabem, jornalismo funciona mais quando é do contra.
Justamente, o filme vive do confronto entre duas amigas. Uma, que é "do contra", chamada Marie (Natacha Régnier). Está sempre de mau humor, parece vocacionada a ser infeliz. Basta encontrar um possível namorado para que se torne agressiva. Há pessoas assim: cada frase que pronunciam é uma gafe, um erro, uma violência involuntária e, ao mesmo tempo, consciente.
Marie é desse tipo. Mas, morando no mesmo apartamento, está Isabelle (Élodie Bouchez). Para essa menina sem eira nem beira, é como se cada ser humano fosse motivo de festa. Ela gosta das pessoas: também isso é uma vocação.
Elas vivem de trabalhos temporários, têm cerca de 20 anos, não sabem o que fazer da vida. Não sou capaz de prosseguir. Já estou falando das duas como se fossem pessoas reais, não personagens.
Élodie Bouchez é um sonho que já apareceu no filme "Les Roseaux Sauvages". O título foi traduzido aqui como "Rosas Selvagens", o que é um erro ("roseaux" significa "juncos"), mas é também um acerto, porque essa atriz tem muito de rosa selvagem mesmo, numa folhagem algo rechonchuda de adolescente a quem não faltam espinhos e ímpetos.
Em "A Vida Sonhada dos Anjos" ela está quase feia. Como se a feiúra fosse um capricho de sua personalidade. E que personalidade! Isabelle é ao mesmo tempo inconsequente e ética. Segue o dever como se tudo se passasse num parque de diversões. Rompe com o hedonismo da sociedade de consumo, mas guarda desse hedonismo o sabor (falso, que ela torna verdadeiro) da liberdade.
Sua companheira, Marie, é mais magra e loira. Natacha Régnier encena aqui um espírito de revolta e de inacessibilidade. É a jovem que, sendo "do contra", não sabe mais contra quem está. Por isso mesmo, apaixona-se, entrega-se à primeira promessa de amor que aparecer.
É como se o diretor, Erick Zonca, estivesse fazendo o contraponto entre duas formas de credulidade. A credulidade otimista, vital, vivida por Élodie Bouchez, e a credulidade frágil, ressentida, da personagem de Natacha Régnier, pronta a cair em qualquer armadilha na medida mesma em que é tão desconfiada.
O fato é que "A Vida Sonhada dos Anjos" triunfa sobre outra credulidade: a do espectador, do crítico. Vejo-me falando das personagens do filme como se fossem reais. Mas é disto que se trata.
O grupo Dogma 95 tenta se contrapor a Hollywood com um decálogo técnico, no qual se proíbem efeitos especiais, além de interditos quanto à trilha sonora, à fotografia etc. Falta avisar que esse decálogo é, ele mesmo, um efeito especial. Trata-se de uma mercadologia de alto nível. Nada do que esses cineastas dinamarqueses realizam se aproxima do real.
Filmes como "Festa de Família" ou "Os Idiotas" não passam de documentários fictícios, confundindo o sensacionalismo com o real. Sensacionalismo contido, por certo, face aos exageros americanos. Mas esses filmes são, acho, um Ratinho dinamarquês.
No caso de "A Vida Sonhada dos Anjos", atinge-se uma realidade além da caricatura. Seria muito pobre comparar o filme a "Shopping & Fucking", peça que esteve há pouco em cartaz no Sesc, que pretende retratar o cotidiano dos "jovens". Nessa peça, o que funciona como situação dramática é a dependência de drogas, o poder do mercado etc. Fenômenos que se contrapõem mecanicamente à clássica (e pós-moderna) "falta de rumo" da juventude.
Como disse Nelson de Sá em sua crítica à peça, algo do original inglês não se transpõe direito para a realidade brasileira. O lúmpen juvenil é de classe média na Inglaterra, ao passo que no Brasil é de classe baixa. Aqui, o "shopping" é uma atividade careta e integrada, enquanto no Primeiro Mundo tem o estatuto do vício, da perversão.
"A Vida Sonhada dos Anjos" não entra nessa armadilha pós-moderna. Não se propõe ser um diagnóstico do "pensamento da juventude". É atual, mas não quer ser "atual". É "realista", mas de certo modo anula o "ismo" da coisa, para ser simplesmente real. E milagroso também: mas não posso contar o fim do filme.
Se é real ou não, nunca saberemos. Basta dizer que Marie e Isabelle, que Natacha e Élodie, são pessoas mais consistentes e apaixonantes do que as que estamos acostumados a encontrar. E, quando a arte consegue ao mesmo tempo ser mais apaixonante e real do que a realidade, fico encantado e feliz. Muito mais do que, como o Dogma 95, que se pretende real além da conta.


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