São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
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POLÊMICA

Público se dividiu entre vaias e gargalhadas durante apresentação na noite de anteontem em SP

"João foi rock'n'roll, cara", diz roqueiro



"Não sou político pra fazer média. O coquetel estava muito bem, mas o som, não"

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

"O pato sou eu."
Faltava pouco para as 23h de quarta-feira quando João Gilberto esculpiu a frase mordaz. Era o sinal definitivo de que o músico baiano iria mesmo estragar a festa. Sozinho no palco do Credicard Hall, ele acabara de cantar "O Pato", clássico da bossa nova.
Segundos antes de dedilhar os acordes iniciais da canção, já se mostrara insatisfeito com a acústica do lugar: "Tem que mudar esse som. Para o bem de todos e felicidade geral da nação". O pior, porém, estava por vir.
Depois de se comparar ao pato bossa-novista, João ainda reclamaria muito -e não só da acústica. Iria criticar, laconicamente, a seleção brasileira de futebol, a hipocrisia dos políticos, a passividade do público diante das mazelas do país. Em troca, ouviria vaias e palavrões. Mas também receberia a defesa apaixonada de Caetano Veloso, o outro protagonista da noite.
Tudo se deu em um cenário improvável: a inauguração da maior casa de shows do Brasil, que fica na zona sul de São Paulo e cuja construção consumiu R$ 34 milhões.
Cerca de 4.500 convidados compareceram à cerimônia, regada a champanhe francês. Havia publicitários, patrocinadores, empresários, assessores de imprensa e toda sorte de famosos: atores globais (Rodrigo Santoro, Malu Mader, Maitê Proença, Luana Piovani, Marília Pêra, Maria Zilda Bethlem), esportistas (Emerson Fittipaldi), roqueiros (Frejat, Toni Belotto, Rogério Flausino), jornalistas (Marília Gabriela, Fabiana Scaranzi), emergentes da TV (Luciano Huck, Sabrina), sertanejos (Roberta Miranda), cantoras de axé (Ivete Sangalo, Daniela Mercury) e o arroz-de-festa habitual (Otávio Mesquita).
Havia, ainda, um estúdio da revista "Caras", onde os vips que chegavam faziam poses para fotos. E havia tucanos: o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, o governador Mário Covas e seu vice, Geraldo Alckmin.
A inauguração começou com os discursos de praxe. Investidores enalteceram a importância cultural do Credicard Hall, empreendimento "à altura do crescente cosmopolitismo paulistano".
Covas, falando de improviso, também se encantou pela alardeada modernidade da casa: "Os senhores que estão sentados na platéia não sabem que, com um simples movimento de computador, toda esta estrutura altera sua posição em 30 minutos".
Mal concluiu o elogio e se agarrou a trocadilhos para apresentar as duas estrelas: "Caetano Veloso foi capaz de transformar a Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade num nome até simpático, Sampa. Toda vez que nós o vemos alguma coisa acontece no meu coração, no coração de vocês... (a esta altura, a platéia o interrompeu com aplausos). Por outro lado, aqui está João Gilberto, e é preciso que nós digamos a ele que chega de saudade".
Às 22h30, os artistas entraram juntos no palco. Preparavam-se para tocar a primeira música quando João murmurou: "Tem um vento aqui". O público riu. E João: "Não é brincadeira, não". Caetano o socorreu, sem graça: "É, tem um ventinho".
Assim que terminaram o samba, João reclamou do eco. Cantaram mais uma, se abraçaram, e Caetano saiu de cena. João comentou: "Ele disse que tá com pena de mim". Depois, ameaçou, baixinho: "Vou processar".
Vieram, então, "Desafinado", "Caminhos Cruzados", "O Pato" e o caos. Do gargarejo, podia-se escutar o eco que tanto irritava João -o"mister eco", como ele dizia.
As espetadas irreverentes do cantor divertiam parte da platéia, que o apoiava com gargalhadas. Outra parte, no entanto, foi perdendo a esportiva. "Você é chato, hein, meu?" "Que eco o quê? Ele tá louco. Parece o Tim Maia." "Chega! Pode ir embora." "Filho da puta, vou rasgar teu cheque!"
Quando Caetano retornou à cena, o clima estava bem quente. Pipocaram vaias contra João, que reagiu mandando às favas a pretensa modernidade da casa e do público: "Vamos brigar, não, que eu topo. Eu topo. Isso é seriíssimo, gente. A seleção brasileira vai assim, muita coisa vai assim, não se cuida das coisas direito. Não tem média, não. Tem que fazer Brasil, tá? Estamos aqui pra isso. Não sou político pra fazer média. O coquetel estava muito bem, mas o som, não."
Sentado à esquerda de João, Caetano buscou apaziguar os ânimos: "Não quero falar nada". Da platéia, alguém emendou: "Isso mesmo, não abre a boca".
Provocado, Caetano mudou de rumo: "Então eu vou falar. Faço muitas coisas que não quero. Não quero falar, mas eu vou falar. Não é você quem vai dizer o que é melhor e o que não é melhor pra mim. Aquelas pessoas que vaiaram João Gilberto não me são aceitas no coração. Não havia nenhuma razão pra isso. Eu ouvi João Gilberto reclamar de que há um eco, e há um eco. Isso precisa ser resolvido. É o conselho de um mestre. Vaiaram por quê?"
João tomou a palavra novamente: "Vocês gostam desse Brasil assim? Seleção... Essa vaia pode ser bebida". E cantarolou, em ritmo de "Samba Lelê": "Vaia de bêbado não vale, vaia de bêbado não vale".
Daí em diante, embora o show continuasse, grande parcela do público preferiu sair. João prosseguiu com os ataques. Disse que nunca mais cantaria no Credicard Hall; que, se fosse artista americano, certamente processaria a casa; que tinha saudade da Argentina: "Sou argentino desde pequenininho" -uma alusão ao bem-sucedido concerto que ele e Caetano fizeram em março, no teatro Gran Rex, de Buenos Aires.
Na hora de "Sampa", uma das últimas músicas da noite, não resistiu à derradeira ironia. Tão logo o parceiro cantou os versos "a força da grana que ergue e destrói coisas belas", João acrescentou: "O som, por exemplo".
Caetano, mais calmo, passou o resto do espetáculo tentando desatar o embaraço. "Não está tão ruim, João. Tem o eco, mas as pessoas estão ouvindo." "Eu fiquei irado, irado mesmo. E agora eu não tô mais irado." "O defeito (acústico) precisa ser sanado, e possivelmente será."
No fim da inauguração, o publicitário Nizan Guanaes, um dos sócios da casa, também tentou driblar o constrangimento.
"O João estragou a festa, Nizan?"
"De jeito nenhum. João é maravilhoso, é divino."
"E o cachê? Ele vai receber?"
"Claro... Uma maravilha, uma maravilha."
O guitarrista Toni Belloto, da banda Titãs, parecia ter se divertido mais. "João? Ele foi rock'n'roll, cara. Foi rock'n'roll pra cacete."


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