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Castigo e bênção
de dois orixás
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Foi uma noite estranha. Pouco
festiva e pouco inaugural, com
aplausos mornos para a sala e
vaias estridentes para o mestre.
Isso importa pouco: a sala há de
fazer ou desfazer seu nome com a
música que se fizer lá dentro. De
importante, então: a música de
João Gilberto e Caetano Veloso,
momentos de música, no burburinho da destemperança.
"Saudosa Maloca" foi o improvável ponto alto e serviu bem para
demonstrar as virtudes complementares de João e Caetano. No
encantamento da beleza de sua
própria voz, Caetano Veloso é um
cantor que vai se entregando para
o espaço. Canta para fora, com a
naturalidade do sol. João é o
oposto: quando começa a cantar,
a música volta para dentro, na direção do que tem de mais calado.
João Gilberto canta como João
Gilberto e só como João Gilberto.
É uma referência pura para si
mesmo, um ideal que ele persegue obsessivamente, atravessando os desconfortos. É Caetano (e
virtualmente só Caetano) quem
ressoa com ele, resguardando a
dimensão mais aberta do canto.
No centro da música, há uma memória, ou resposta a João, a partir
da qual vêm se expandir os círculos da sua própria voz. Escutar
um e outro cantando alternados é
uma lição sobre o que passa, e o
que se ultrapassa, na arte, e o que
se transforma e se cria.
Não há cantor mais sofisticado
do que Caetano Veloso hoje no
país. Mas mesmo ele parece relativamente simples quando se depara com a simplicidade antinatural de João Gilberto. Ele é o cantor silábico e metafísico, destinado às intensidades de cada segundo. Ninguém respira como ele, e
uma linha musical, cantada por
João, vira uma aventura e um risco -para ele, que canta num limite do ideal, e para nós, que vamos seguindo o canto como
crianças.
Nada disso fazia muito sentido
no Credicard Hall. É muito estranho, para quem não está acostumado, ir escutar música e se ver
sentado num bingo, em mesas de
fórmica com baldes de gelo em cima e garçons ao redor. A distância do palco acaba obrigando a
olhar para os telões também. Que
idéia esquisita: sair de casa para
ver televisão e escutar o vizinho
da mesa ao lado cantar. É preciso
esforço para encontrar a música
no meio disso tudo.
Para quem estava no palco, a vida ficou estranha também. Tinha
razão João Gilberto ao reclamar
uma, duas e 300 vezes do eco no
retorno de som? Provavelmente,
embora a forma e a hora não fossem as mais simpáticas, para dizer o mínimo. Foi Caetano quem
teve a elegância de acalmar os ânimos sem contemporizar.
A "luna rossa", operística lua
vermelha de uma canção em dialeto italiano, marcou o ponto de
virada desse show tão arrevesado.
Mesmo em seu mau humor, e
atormentado pelo eco, João Gilberto teve sempre a grandeza de
fazer grande arte onde ela já parecia ter desaparecido, como em
"Garota de Ipanema". Mas foi a lua
de Caetano que dispensou raios
de benevolência sobre todos e salvou o espírito da música. A partir
daí (com uma hora transcorrida,
e outra pela frente), a noite ficou
magnetizada, e só não ouviu maravilhas quem não quis.
Foi uma noite estranha. Mas
que foi se desestranhando aos
poucos, até o final, sem clímax.
Inaugurada por João e Caetano,
foi como se a nova sala tivesse sido castigada e abençoada pelos
dois orixás. A bênção e o castigo
foram merecidos, e com essa memória o teatro, agora, que comece
a fazer seu nome com música.
Avaliação:
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