São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
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Castigo e bênção de dois orixás


ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Foi uma noite estranha. Pouco festiva e pouco inaugural, com aplausos mornos para a sala e vaias estridentes para o mestre. Isso importa pouco: a sala há de fazer ou desfazer seu nome com a música que se fizer lá dentro. De importante, então: a música de João Gilberto e Caetano Veloso, momentos de música, no burburinho da destemperança.
"Saudosa Maloca" foi o improvável ponto alto e serviu bem para demonstrar as virtudes complementares de João e Caetano. No encantamento da beleza de sua própria voz, Caetano Veloso é um cantor que vai se entregando para o espaço. Canta para fora, com a naturalidade do sol. João é o oposto: quando começa a cantar, a música volta para dentro, na direção do que tem de mais calado.
João Gilberto canta como João Gilberto e só como João Gilberto. É uma referência pura para si mesmo, um ideal que ele persegue obsessivamente, atravessando os desconfortos. É Caetano (e virtualmente só Caetano) quem ressoa com ele, resguardando a dimensão mais aberta do canto. No centro da música, há uma memória, ou resposta a João, a partir da qual vêm se expandir os círculos da sua própria voz. Escutar um e outro cantando alternados é uma lição sobre o que passa, e o que se ultrapassa, na arte, e o que se transforma e se cria.
Não há cantor mais sofisticado do que Caetano Veloso hoje no país. Mas mesmo ele parece relativamente simples quando se depara com a simplicidade antinatural de João Gilberto. Ele é o cantor silábico e metafísico, destinado às intensidades de cada segundo. Ninguém respira como ele, e uma linha musical, cantada por João, vira uma aventura e um risco -para ele, que canta num limite do ideal, e para nós, que vamos seguindo o canto como crianças.
Nada disso fazia muito sentido no Credicard Hall. É muito estranho, para quem não está acostumado, ir escutar música e se ver sentado num bingo, em mesas de fórmica com baldes de gelo em cima e garçons ao redor. A distância do palco acaba obrigando a olhar para os telões também. Que idéia esquisita: sair de casa para ver televisão e escutar o vizinho da mesa ao lado cantar. É preciso esforço para encontrar a música no meio disso tudo.
Para quem estava no palco, a vida ficou estranha também. Tinha razão João Gilberto ao reclamar uma, duas e 300 vezes do eco no retorno de som? Provavelmente, embora a forma e a hora não fossem as mais simpáticas, para dizer o mínimo. Foi Caetano quem teve a elegância de acalmar os ânimos sem contemporizar.
A "luna rossa", operística lua vermelha de uma canção em dialeto italiano, marcou o ponto de virada desse show tão arrevesado. Mesmo em seu mau humor, e atormentado pelo eco, João Gilberto teve sempre a grandeza de fazer grande arte onde ela já parecia ter desaparecido, como em "Garota de Ipanema". Mas foi a lua de Caetano que dispensou raios de benevolência sobre todos e salvou o espírito da música. A partir daí (com uma hora transcorrida, e outra pela frente), a noite ficou magnetizada, e só não ouviu maravilhas quem não quis.
Foi uma noite estranha. Mas que foi se desestranhando aos poucos, até o final, sem clímax. Inaugurada por João e Caetano, foi como se a nova sala tivesse sido castigada e abençoada pelos dois orixás. A bênção e o castigo foram merecidos, e com essa memória o teatro, agora, que comece a fazer seu nome com música.


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