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ANÁLISE
Prêmio quebra jejum e consagra humanismo
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
Günter Grass é o primeiro escritor alemão a receber o Nobel
desde 1972, quando o prêmio foi
outorgado ao também romancista Heinrich Boll.
No entretempo, pelo menos um
outro autor de língua alemã,
mas não natural da Alemanha
(nem cidadão de nenhuma das
duas) foi premiado pelos suecos:
Elias Canetti, em 1981. Embora
sua língua literária fosse a mesma dos outros dois, ele havia
nascido na Bulgária e vivia, então, entre a Suíça e a Inglaterra.
O Nobel de Grass é um desses
que, como o de Octavio Paz (que
foi finalmente concedido em 90)
ou como o de Jorge Luis Borges
(que não foi), era esperado há
muito tempo. De fato, ele era
considerado um candidato sério
já na época em que seu colega recebeu o prêmio.
E isso por uma razão simples:
desde a publicação, em 59, de seu
primeiro e mais célebre romance, "O Tambor", o alemão é tido
como um dos dois ou três grandes nomes da literatura do pós-guerra em seu país.
Nos anos 60 ele havia se celebrizado, além disso, como alguém profundamente envolvido
na política, um social-democrata convicto e amigo próximo de
Willy Brandt.
Sua atuação nessa área, aliás,
não diminuiu com o correr do
tempo. Pelo contrário. Por exemplo, depois da queda em 89 do
Muro de Berlim e do fim de fato
da divisão da Alemanha em dois
países, ele foi um dos poucos intelectuais locais que tiveram a
coragem de questionar tudo o
que a reunificação envolvia.
Grass nasceu em 1927, descendente de alemães e poloneses, na
cidade de Danzig, cuja situação
então era peculiar, a de uma cidade onde essas duas nacionalidades conviviam num estado de
tensão característico dos lugares
que faziam fronteira não entre
dois países, mas entre dois mundos.
Danzig, a cidade portuária na
costa báltica onde começou a Segunda Guerra Mundial, pertence, hoje em dia, com o nome de
Gdansk, à Polônia e, na virada
dos anos 70/80, voltou às manchetes como o berço do sindicato
livre Solidariedade.
O mundo, porém, ao qual os
escritos de Grass volta e meia remetem é outro. Trata-se de algo
que não existe mais, a saber, o
universo das comunidades alemãs radicadas havia séculos em
regiões da Europa Oriental cuja
população majoritária era sobretudo eslava.
O grosso dessas comunidades,
principalmente devido ao envolvimento de boa parte delas com
o nazismo, acabou, no final da
guerra, sendo expulso de lá num
êxodo de mais de 15 milhões de
pessoas, que pode bem ter lhe
custado quase 2 milhões de mortos.
A antiga Danzig é onde se ambienta "O Tambor", a história,
mais ou menos contada em primeira pessoa, de um garoto que,
nas vésperas da Guerra, fascinado e horrorizado com mundo
dos adultos, resolve parar de
crescer, mas nem por isso deixa
de acompanhar tudo o que sucede ao seu redor. Best seller imediato quando de seu lançamento, o livro tornou-se posteriormente um filme de sucesso internacional.
Vários dentre os romances seguintes de Grass retornam ao
ambiente em questão, e é sua
origem num lugar que deixou de
ser alemão e que mesmo antes o
era só numa certa medida e de
modo muito peculiar que lhe
permitiu assumir, na cultura de
seu país, uma posição a um tempo central e marginal.
Membro, na adolescência, da
juventude hitlerista e depois soldado, o escritor foi ferido e logo
feito prisioneiro pelo exército
americano. Com raízes assim e
uma experiência precoce como
essa, ele pôde desde cedo constatar pessoalmente a dimensão do
desastre que o projeto expansionista alemão representou, não só
para os vizinhos, como para seu
próprio povo.
Tanto na sua ficção quanto na
sua atuação pública, ele tem se
mostrado, portanto, um dos raros intelectuais de seu país dispostos a relembrar incessantemente as loucuras históricas de
seus compatriotas e a defender
idéias que a maioria de seus concidadãos nem sempre ouve com
prazer.
Entre outras causas defendidas
por Grass está a da igualdade de
direitos para os trabalhadores
imigrantes, dos quais há milhões
na Alemanha. Por isso, talvez, o
que há de atípico nos seus pontos
de vista reaparece também no
plano estilístico de sua escrita.
Ele, mais do que um continuador da grande tradição realista e
crítica que tem em Thomas
Mann (outro ganhador do Nobel) seu expoente alemão mais
renomado, preferiu ressuscitar
uma tradição praticamente esquecida da literatura germânica.
Para quase todos os escritores
alemães dos últimos 200 anos,
sua literatura começa em meados do século 18, com o "Sturm
und Drang" e a geração de Goethe e Schiller. Grass, porém, toma como seus antecessores mais
diretos os prosadores do século
17, nas obras dos quais convergiam o barroquismo e o picaresco. A revivificação desse legado
torna, segundo os críticos, sua
prosa inusitada, rebuscada e,
concomitantemente, cômica, um
traço distintivo que se patenteia
também na sua poesia.
O Nobel de Grass consagra
tanto uma das vozes mais lúcidas da Alemanha quanto o que
conseguiu manter-se vivo e
atuante no humanismo alemão,
chamando igualmente a atenção para um mundo perdido e
para uma herança literária relativamente pouco frequentada.
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