São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Prêmio quebra jejum e consagra humanismo


NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Günter Grass é o primeiro escritor alemão a receber o Nobel desde 1972, quando o prêmio foi outorgado ao também romancista Heinrich Boll.
No entretempo, pelo menos um outro autor de língua alemã, mas não natural da Alemanha (nem cidadão de nenhuma das duas) foi premiado pelos suecos: Elias Canetti, em 1981. Embora sua língua literária fosse a mesma dos outros dois, ele havia nascido na Bulgária e vivia, então, entre a Suíça e a Inglaterra.
O Nobel de Grass é um desses que, como o de Octavio Paz (que foi finalmente concedido em 90) ou como o de Jorge Luis Borges (que não foi), era esperado há muito tempo. De fato, ele era considerado um candidato sério já na época em que seu colega recebeu o prêmio.
E isso por uma razão simples: desde a publicação, em 59, de seu primeiro e mais célebre romance, "O Tambor", o alemão é tido como um dos dois ou três grandes nomes da literatura do pós-guerra em seu país.
Nos anos 60 ele havia se celebrizado, além disso, como alguém profundamente envolvido na política, um social-democrata convicto e amigo próximo de Willy Brandt.
Sua atuação nessa área, aliás, não diminuiu com o correr do tempo. Pelo contrário. Por exemplo, depois da queda em 89 do Muro de Berlim e do fim de fato da divisão da Alemanha em dois países, ele foi um dos poucos intelectuais locais que tiveram a coragem de questionar tudo o que a reunificação envolvia.
Grass nasceu em 1927, descendente de alemães e poloneses, na cidade de Danzig, cuja situação então era peculiar, a de uma cidade onde essas duas nacionalidades conviviam num estado de tensão característico dos lugares que faziam fronteira não entre dois países, mas entre dois mundos.
Danzig, a cidade portuária na costa báltica onde começou a Segunda Guerra Mundial, pertence, hoje em dia, com o nome de Gdansk, à Polônia e, na virada dos anos 70/80, voltou às manchetes como o berço do sindicato livre Solidariedade.
O mundo, porém, ao qual os escritos de Grass volta e meia remetem é outro. Trata-se de algo que não existe mais, a saber, o universo das comunidades alemãs radicadas havia séculos em regiões da Europa Oriental cuja população majoritária era sobretudo eslava.
O grosso dessas comunidades, principalmente devido ao envolvimento de boa parte delas com o nazismo, acabou, no final da guerra, sendo expulso de lá num êxodo de mais de 15 milhões de pessoas, que pode bem ter lhe custado quase 2 milhões de mortos.
A antiga Danzig é onde se ambienta "O Tambor", a história, mais ou menos contada em primeira pessoa, de um garoto que, nas vésperas da Guerra, fascinado e horrorizado com mundo dos adultos, resolve parar de crescer, mas nem por isso deixa de acompanhar tudo o que sucede ao seu redor. Best seller imediato quando de seu lançamento, o livro tornou-se posteriormente um filme de sucesso internacional.
Vários dentre os romances seguintes de Grass retornam ao ambiente em questão, e é sua origem num lugar que deixou de ser alemão e que mesmo antes o era só numa certa medida e de modo muito peculiar que lhe permitiu assumir, na cultura de seu país, uma posição a um tempo central e marginal.
Membro, na adolescência, da juventude hitlerista e depois soldado, o escritor foi ferido e logo feito prisioneiro pelo exército americano. Com raízes assim e uma experiência precoce como essa, ele pôde desde cedo constatar pessoalmente a dimensão do desastre que o projeto expansionista alemão representou, não só para os vizinhos, como para seu próprio povo.
Tanto na sua ficção quanto na sua atuação pública, ele tem se mostrado, portanto, um dos raros intelectuais de seu país dispostos a relembrar incessantemente as loucuras históricas de seus compatriotas e a defender idéias que a maioria de seus concidadãos nem sempre ouve com prazer.
Entre outras causas defendidas por Grass está a da igualdade de direitos para os trabalhadores imigrantes, dos quais há milhões na Alemanha. Por isso, talvez, o que há de atípico nos seus pontos de vista reaparece também no plano estilístico de sua escrita.
Ele, mais do que um continuador da grande tradição realista e crítica que tem em Thomas Mann (outro ganhador do Nobel) seu expoente alemão mais renomado, preferiu ressuscitar uma tradição praticamente esquecida da literatura germânica.
Para quase todos os escritores alemães dos últimos 200 anos, sua literatura começa em meados do século 18, com o "Sturm und Drang" e a geração de Goethe e Schiller. Grass, porém, toma como seus antecessores mais diretos os prosadores do século 17, nas obras dos quais convergiam o barroquismo e o picaresco. A revivificação desse legado torna, segundo os críticos, sua prosa inusitada, rebuscada e, concomitantemente, cômica, um traço distintivo que se patenteia também na sua poesia.
O Nobel de Grass consagra tanto uma das vozes mais lúcidas da Alemanha quanto o que conseguiu manter-se vivo e atuante no humanismo alemão, chamando igualmente a atenção para um mundo perdido e para uma herança literária relativamente pouco frequentada.


Texto Anterior: Escritor Günter Grass leva Nobel de literatura
Próximo Texto: Cinema/Estréias: "Blair" é inspirado em produção (mais) barata
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.