São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY

Da arte de caçar rolinhas nos quintais baldios

Outro dia, num desses questionários que as companhias de seguro nos mandam, havia uma pergunta que me pareceu inútil: quais os esportes que eu praticara? Já havia respondido, na pergunta anterior, que atualmente meu único esporte é andar pela Lagoa. Mas ao longo da existência pratiquei outros, com alguma assiduidade, principalmente o futebol, do qual guardo saudades e cicatrizes. Pensei um pouco e me indaguei se devia colocar a caça de rolinhas, afinal era uma caça, e caça foi esporte durante séculos e ainda o é entre as nobres gentes.
Bem verdade que para caçar rolinhas não se usavam cavalos, armas, palafreneiros, cães farejadores e trompas. Nem os quintais do Lins de Vasconcelos eram ricos de caça. Na verdade, ali só se podiam caçar rolinhas, e as havia, e muitas.
Com o tempo, o que começou como esporte virou safadeza, e das grossas. Explico e lembro: para caçar rolinhas era preciso, além das rolinhas, uma bacia, um pedaço de pau, um barbante bem comprido, um punhado de milho, uma moita de capim ou de qualquer outra vegetação equivalente, e um companheiro -pois caçar rolinha sozinho era chato. E além de chato, inútil, pois nada se fazia com as rolinhas caçadas.
Tudo era fácil de arranjar, mas o item principal era o companheiro. Tinha de ser, acima de tudo, dócil. E em dose igual, complacente. E, se não fosse ingênuo, tinha de fingir que o era. Mesmo assim, naquele tempo a oferta era farta, pois havia muitos meninos que eram dóceis, complacentes e, por isso ou aquilo, fingiam a ingenuidade tão bem que às vezes eram ingênuos mesmo.
O esporte, como qualquer outro, tinha regras. Um mandava, outro obedecia. Em geral, o dono da bacia, do barbante e do punhado de milho era o dono. Sua sabedoria consistia em escolher o campo da pugna em que haveria dois adversários: a rolinha e o companheiro.
Até ali, o mais importante podia ser a rolinha que na certa viria, tentada pelo milho farto que se oferecia na sombra maternal da bacia. A partir de certo ponto, a rolinha deixava de ser prioritária. Testava-se o companheiro com mil artifícios. De início, ele parecia não entender, aos poucos começava a compreender para o que estava ali, de bruços, a cara encostada na terra, sem se poder mover, pois qualquer movimento poderia ""assustar as rolinhas", e aí nunca mais seria convocado para a caça das mesmas.
Escolhido o local (eu já tinha alguns sítios testados e outros que poderia usar em casos emergenciais), colocava a bacia apoiada no toco de pau, ao qual amarrava o barbante comprido. Esparramava o milho na sombra gostosa que a bacia fazia no chão.
Com perícia que adquiri rapidamente, ia levando o barbante para trás da moita, que precisava ter dois requisitos fundamentais: dar visão à bacia que ficava à frente e não dar nenhuma visão a quem ficasse atrás. Era importante ver (a bacia) e não ser visto (por ninguém).
Armado o cenário, o tempo fazia o resto. Deitava-se ao lado do companheiro, obrigando-o não apenas ao silêncio, mas à imobilidade. Ficavam a cargo do dono da brincadeira os lances seguintes, que eram exatamente os mais sutis. Qualquer precipitação poderia assustar não apenas as rolinhas, mas o companheiro.
Como nas guerras de verdade, precisava-se antes de mais nada da aproximação justa. Aníbal viera de tão longe, deixara Cartago, pulara para a Espanha, fundara Barcelona, atravessara os Alpes com seus imensos elefantes africanos, acampou em Cápua e se deliciou antes do tempo, achando que já tinha dominado a orgulhosa Roma e a possuído com a força de seu desejo. Foi talvez o caso mais notável de ejaculação precoce na história humana.
Qualquer bobeira poderia estragar o caldo. Após os golpes preliminares, em que o companheiro volta e meia servia de apoio para que o dono do brinquedo tivesse visão melhor da bacia, anunciava-se a hora da hora. Com voz baixa, soprada, descrevia-se o panorama geral da refrega: ""Pronto... chegou uma rolinha... está querendo entrar... vai entrar... fique quieto, não se mexa... ela vai entrar... está olhando... agora... olhou para o lado... vai entrar...".
Com a cara enterrada no chão, o companheiro nem respirava para não espantar a rolinha. Compreendia que era o momento culminante de sua colaboração, de sua passividade iria depender o sucesso da caça. De tanto servir de apoio ao dono do brinquedo, o companheiro habituara-se. Nada demais que, na hora decisiva, ele ficasse quieto, suportando o peso e a perícia de quem iria desfechar o golpe fatal.
Passava-se um tempo em que os dois respiravam juntos, e cada qual compreendia o outro. Até que o dono, para consolar o companheiro, deixava-o puxar o barbante. A bacia caía e prendia a rolinha. Os dois então corriam, muitas vezes nem tinha rolinha embaixo, o dono tinha o direito de reclamar: ""Você bobeou, não soube puxar o barbante". E para garantir uma segunda vez, prometia: ""Amanhã vamos ver se você acerta...".


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