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BERNARDO CARVALHO
"A Tentação de Santo Antônio": ler para ver
Bob Wilson está preparando uma montagem de "A
Tentação de Santo Antônio", de
Flaubert (1821-80), com estréia
prevista para junho do ano que
vem, na Alemanha. Deve ser um
casamento perfeito. Não é difícil
imaginar o que o criador do que
foi batizado de "teatro de imagens", no final dos anos 60, por
subverter a hegemonia do teatro
psicológico em nome de uma concepção visual da totalidade da cena, pretende fazer com o cortejo
de deuses pagãos, animais míticos e outras aberrações que assombram santo Antônio em seu
refúgio de ermitão.
Inspirado nos teatros de feiras
medievais e num quadro de Bruegel que viu numa viagem à Itália,
Flaubert foi buscar em livros sobre o paganismo, sobre as heresias, sobre as origens do cristianismo, sobre o judaísmo e sobre a
mitologia greco-romana e oriental os personagens alucinantes
que desfilam pelas linhas desse
texto igualmente híbrido, que a
rigor não poderia ser chamado de
peça.
Há dez anos, eu me despenquei
de metrô, do sul de Manhattan
para o coração do South Bronx,
um dos bairros mais pobres,
abandonados e violentos de Nova
York, por causa de "A Tentação
de Santo Antônio". Só que, no
meu caso, não foi exatamente o
desfile feérico de imagens exóticas
que me levou a sair à procura de
um galpão num prédio deteriorado de um bairro de imigrantes latinos, onde imperava a violência,
a Aids e o tráfico de drogas. Fui
atrás de uma explicação para as
imagens das páginas do livro de
Flaubert, agora ampliadas e pintadas com sangue de cavalo, que
eu tinha visto expostas na Bienal
do Whitney Museum.
Os quadros em que o texto do
autor francês servia de tela e fundo para grandes manchas de sangue, espalhadas com o auxílio de
seringas e instrumentos cirúrgicos, foram concebidos por um
grupo de adolescentes de periferia
(K.O.S. -Kids of Survival, ou
caos) sob a orientação de um artista plástico e educador, Tim Rollins, que se inspirava nos métodos do brasileiro Paulo Freire. Rollins trabalhava, e ainda trabalha, com adolescentes, a partir da
leitura de textos literários ("Moby
Dick", "Amerika", de Kafka, "Pinóquio", de Collodi etc.). As obras
nascem das discussões que a leitura produz.
O artista começou dando aulas
numa escola pública do South
Bronx e logo percebeu, em 1982,
que podia ajudar os alunos mais
desajustados -e com sérias dificuldades de aprendizado- por
meio de um método alternativo
que associava literatura e arte.
Alguns mal conseguiam ler uma
frase. Num dos primeiros projetos, propôs aos alunos que desenhassem o que lhes passasse pela
cabeça conforme ele lia em voz alta "1984", de George Orwell. Um
dos garotos não entendeu a proposta e começou a desenhar nas
páginas do próprio livro. E foi assim que nasceu uma marca registrada que, incorporada por Rollins, por mais de dez anos iria fazer do K.O.S. um dos expoentes da
arte americana dos anos 80 e 90.
Num belo texto sobre "A Tentação de Santo Antônio", Michel
Foucault defende que Flaubert
abriu com esse livro uma nova via
para a literatura ocidental, sem a
qual não poderiam existir Joyce,
Kafka e Borges, entre outros. A
novidade de "A Tentação..." está
no fato de o livro passar a ser em
si uma espécie de biblioteca. A
única dimensão inventada é a ordem minuciosa em que surgem as
tentações. O que parece ser fantasia do autor (os deuses e animais
imaginários) não passa da transcrição de documentos pesquisados em outros livros.
Assim também, para o santo
Antônio de Flaubert, o próprio livro passa a ser o lugar da tentação. Toda a fantasmagoria que
assombra o eremita parece vir, na
verdade, do Velho Testamento
que ele tem aberto diante de si no
quadro de Bruegel que inspirou o
escritor. A idéia é que o imaginário nasce dos livros: "Para sonhar,
não devemos fechar os olhos, mas
ler", escreve Foucault.
Quando visitei Tim Rollins e o
K.O.S. no South Bronx, eles estavam se preparando para expor
obras baseadas em "Pinóquio",
numa das galerias mais prestigiosas de Nova York. O trabalho com
a "Tentação" tinha surgido da
vontade de dar uma forma contemporânea ao mal. Todo o projeto do K.O.S. levanta uma questão interessante sobre a arte
transformadora de uma realidade social degradada, sem cair no
populismo ou nas armadilhas do
realismo sociológico. A política de
Rollins é, por meio dos livros, tornar material a imaginação desses
adolescentes. E com isso, ao dar
forma a tais imagens, mostrar-lhes que podem converter em
criação o que os assombrava.
Antes de nos despedirmos, Rollins me levou a uma sala em que
várias toras de madeira estavam
embrulhadas e amontoadas. Faziam parte de uma instalação a
ser exposta na galeria. Escolheu
uma delas e a desembrulhou.
Acomodou-a no chão e esperou a
minha reação. Demorei a perceber. Em "Pinóquio", quando decide criar o boneco de madeira, o velho Gepeto começa pelos olhos.
No chão, aos meus pés, estava
uma tora com dois olhos de vidro
incrustados na madeira. Olhava
para mim. Nunca vou esquecer
aquele olhar.
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