São Paulo, terça-feira, 01 de outubro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

"A Tentação de Santo Antônio": ler para ver

Bob Wilson está preparando uma montagem de "A Tentação de Santo Antônio", de Flaubert (1821-80), com estréia prevista para junho do ano que vem, na Alemanha. Deve ser um casamento perfeito. Não é difícil imaginar o que o criador do que foi batizado de "teatro de imagens", no final dos anos 60, por subverter a hegemonia do teatro psicológico em nome de uma concepção visual da totalidade da cena, pretende fazer com o cortejo de deuses pagãos, animais míticos e outras aberrações que assombram santo Antônio em seu refúgio de ermitão.
Inspirado nos teatros de feiras medievais e num quadro de Bruegel que viu numa viagem à Itália, Flaubert foi buscar em livros sobre o paganismo, sobre as heresias, sobre as origens do cristianismo, sobre o judaísmo e sobre a mitologia greco-romana e oriental os personagens alucinantes que desfilam pelas linhas desse texto igualmente híbrido, que a rigor não poderia ser chamado de peça.
Há dez anos, eu me despenquei de metrô, do sul de Manhattan para o coração do South Bronx, um dos bairros mais pobres, abandonados e violentos de Nova York, por causa de "A Tentação de Santo Antônio". Só que, no meu caso, não foi exatamente o desfile feérico de imagens exóticas que me levou a sair à procura de um galpão num prédio deteriorado de um bairro de imigrantes latinos, onde imperava a violência, a Aids e o tráfico de drogas. Fui atrás de uma explicação para as imagens das páginas do livro de Flaubert, agora ampliadas e pintadas com sangue de cavalo, que eu tinha visto expostas na Bienal do Whitney Museum.
Os quadros em que o texto do autor francês servia de tela e fundo para grandes manchas de sangue, espalhadas com o auxílio de seringas e instrumentos cirúrgicos, foram concebidos por um grupo de adolescentes de periferia (K.O.S. -Kids of Survival, ou caos) sob a orientação de um artista plástico e educador, Tim Rollins, que se inspirava nos métodos do brasileiro Paulo Freire. Rollins trabalhava, e ainda trabalha, com adolescentes, a partir da leitura de textos literários ("Moby Dick", "Amerika", de Kafka, "Pinóquio", de Collodi etc.). As obras nascem das discussões que a leitura produz.
O artista começou dando aulas numa escola pública do South Bronx e logo percebeu, em 1982, que podia ajudar os alunos mais desajustados -e com sérias dificuldades de aprendizado- por meio de um método alternativo que associava literatura e arte. Alguns mal conseguiam ler uma frase. Num dos primeiros projetos, propôs aos alunos que desenhassem o que lhes passasse pela cabeça conforme ele lia em voz alta "1984", de George Orwell. Um dos garotos não entendeu a proposta e começou a desenhar nas páginas do próprio livro. E foi assim que nasceu uma marca registrada que, incorporada por Rollins, por mais de dez anos iria fazer do K.O.S. um dos expoentes da arte americana dos anos 80 e 90.
Num belo texto sobre "A Tentação de Santo Antônio", Michel Foucault defende que Flaubert abriu com esse livro uma nova via para a literatura ocidental, sem a qual não poderiam existir Joyce, Kafka e Borges, entre outros. A novidade de "A Tentação..." está no fato de o livro passar a ser em si uma espécie de biblioteca. A única dimensão inventada é a ordem minuciosa em que surgem as tentações. O que parece ser fantasia do autor (os deuses e animais imaginários) não passa da transcrição de documentos pesquisados em outros livros.
Assim também, para o santo Antônio de Flaubert, o próprio livro passa a ser o lugar da tentação. Toda a fantasmagoria que assombra o eremita parece vir, na verdade, do Velho Testamento que ele tem aberto diante de si no quadro de Bruegel que inspirou o escritor. A idéia é que o imaginário nasce dos livros: "Para sonhar, não devemos fechar os olhos, mas ler", escreve Foucault.
Quando visitei Tim Rollins e o K.O.S. no South Bronx, eles estavam se preparando para expor obras baseadas em "Pinóquio", numa das galerias mais prestigiosas de Nova York. O trabalho com a "Tentação" tinha surgido da vontade de dar uma forma contemporânea ao mal. Todo o projeto do K.O.S. levanta uma questão interessante sobre a arte transformadora de uma realidade social degradada, sem cair no populismo ou nas armadilhas do realismo sociológico. A política de Rollins é, por meio dos livros, tornar material a imaginação desses adolescentes. E com isso, ao dar forma a tais imagens, mostrar-lhes que podem converter em criação o que os assombrava.
Antes de nos despedirmos, Rollins me levou a uma sala em que várias toras de madeira estavam embrulhadas e amontoadas. Faziam parte de uma instalação a ser exposta na galeria. Escolheu uma delas e a desembrulhou. Acomodou-a no chão e esperou a minha reação. Demorei a perceber. Em "Pinóquio", quando decide criar o boneco de madeira, o velho Gepeto começa pelos olhos. No chão, aos meus pés, estava uma tora com dois olhos de vidro incrustados na madeira. Olhava para mim. Nunca vou esquecer aquele olhar.



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