São Paulo, Segunda-feira, 01 de Novembro de 1999
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FERNANDO GABEIRA

Au au au pra você, nesta data querida

"Sorria, você está na Barra". É a frase que você vê quando sai do túnel e entra nesse bairro para onde se estendeu a ocupação da zona sul do Rio. Shoppings centers, hospitais modernos, nomes em inglês e, nos últimos tempos, uma estátua da Liberdade, simbolizando o fascínio que exerce sobre ela o modelo norte-americano. Tudo transmite opulência, mas o cheiro nem sempre é bom. A Barra da Tijuca foi se construindo cada vez com mais luxo, mas fracassou num fundamento básico: não tem saneamento. Suas lagoas estão morrendo; sufocadas por toneladas de esgoto, já perderam a capacidade líquida de absorver tanta matéria orgânica.
O biólogo Mário Moscateli, um batalhador na salvação dos manguezais, monitora águas da baixada de Jacarepaguá e frequentemente lança dramáticos S.O.S, que só cessarão mesmo com a presença de um emissário submarino que possa despejar no mar águas tratadas pelos menos duas vezes.
A Barra da Tijuca tem alto índice de edifícios inteligentes. Um arquiteto dizia para mim: "Como podem ser inteligentes edifícios cercados por águas apodrecendo?" Minha única explicação é que esse tipo de visão de mundo tende a reduzir a inteligência à sua dimensão artificial. Os computadores não conseguem analisar as variáveis sociais e ecológicas. Inteligente, de um ponto de vista concreto, não virtual, seria compreender o pedaço do litoral que se estava ocupando e sua relação com a cidade no seu conjunto.
A Barra tem um alto índice de carros por habitante. Dizem que um por um, mas jamais vi uma pesquisa que comprovasse isso. Mas é razoável admitir que o nível seja alto. Tão alto que seus acessos ficam congestionados e agora há um projeto de se abrir um novo túnel no morro Dois Irmãos, intervindo com violência na paisagem.
Um modo de vida parecido com o norte-americano, apesar de minoritário, acaba definindo os rumos de uma das mais belas cidades do mundo, transformando-a numa espécie de vítima do suicídio cultural de sua elite econômica. A maioria prefere manter a paisagem e, no lugar de túnel, um bom sistema de transporte coletivo, para desafogar o trânsito.
A idéia de se construir uma Miami tropical, perpassada pelo ocasional mau cheiro cortando a fantasia como uma lâmina da realidade, não explica, mas introduz bem a festa de aniversário de uma cadela, cuja dona é uma das ricaças do bairro.
Num país onde ainda há tanta crueldade contra os animais, um gesto de carinho é sempre bem recebido. No entanto, a opulência e humanização dos bichos seria até aceitável se não estivéssemos num pais onde animalizam as pessoas, muitas delas sentindo-se verdadeiras vira-latas, quando comparam pela TV sua pobreza com o luxo de certas vidas de cão.
Substituíram a letra do parabéns para você e no seu lugar cantaram au au au au au au au. Estava meio distraído quando apareceram cantando na TV e aquilo me impressionou. Tudo o que vinha pensando sobre a Barra apareceu para mim com uma trilha sonora que dramatizava minhas intuições.
Pensei nos arqueólogos que visitarem nossas ruínas daqui a muitos séculos. Vão se espantar com o tamanho dos quartos de empregada. Se acharem vestígios do luxo canino, aí então vão se surpreender mais.
Mas, na verdade, todo aquele au au au estava um pouco contra a corrente. A questão da miséria entrou na agenda política. Até o FMI mencionou o tema. Existe uma compreensão melhor da urgência de combater a fome e, certamente, será um dos debates mais importantes da próxima eleição presidencial.
A própria Barra será envolvida nessa nova visão. O sonho americano acabará despertando para a realidade brasileira e aí nossa vida vai correr mais suave, com o morro no seu lugar, as águas límpidas do Atlântico, e pessoas cantando parabéns para outras pessoas. Usando, de preferencia, a linguagem humana, onde se desdobra o pensamento, singularidade da nossa espécie.
Não quero que entendam como um protesto. O ideal era não comentar estilos de vida. Mas partilhamos da mesma paisagem. Nossos destinos estão entrelaçados, as balas perdidas cruzam os ares, as lagoas estão morrendo. Essa festa tem de acabar logo: os docinhos caem na ponte e caímos todos na realidade.


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