São Paulo, quinta-feira, 01 de novembro de 2001

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CRÍTICA

Austríaco força o corpo em ludismo cruel

CRÍTICO DA FOLHA

Embora o seu também seja um "cinema do corpo", Ulrich Seidl está longe da candura dos filmes de Jean Eustache ("La Maman et la Putain"), o subestimado cineasta francês por quem se diz influenciado.
A exemplo da tradição a que Eustache pertence, a do cinema moderno, Seidl busca, no corpo, a alma. E, embora saiba de antemão que não mais a encontrará, deleita-se em forçar o corpo até o limite, com seu ludismo cruel e desesperado.
É mais do que inevitável filiar o filme de Seidl ao cinema de Michael Haneke. A este coube fazer do prognóstico dos melhores cineastas dos anos 60 um diagnóstico definitivo da "morte do espírito" na sociedade moderna. A Seidl, que representa uma das mais ricas tendências do cinema contemporâneo europeu, caberia não esvaziar a crítica de Haneke.
"Dias de Cão" comporta os temas mais caros de Haneke: a incapacidade de amar e a banalização do atroz, sintomas da rigidez inumana da civilização. Um casal que já não se fala, nem se ama, mas continua vivendo junto. Uma senhora humilhada que só chega à conclusão de que ama o namorado após torturá-lo. Um velho que só ama o cachorro e dedica o seu tempo a ser um consumidor atento. Uma stripper anoréxica e seu namorado ciumento. Uma autista obcecada por listas e caronas e o vendedor de seguros que dela se aproveita. As relações estão tão mortas quanto os sentimentos.
Seidl surpreende essa morte no corpo. Haneke ainda acredita na dor. Em seus filmes, o espírito está morto, mas o corpo ainda pode ser reavivado pela dor. Em Seidl, os sintomas dessa morte espiritual estão na própria decrepitude do corpo. Esses corpos besuntados que o cineasta surpreende, nos dias mais quentes do ano (os tais "dias de cão"), nas piscinas de um subúrbio austríaco, poderiam lembrar alguns quadros de David Hockney, mas basta olhar de perto para ver toda a degenerescência dos corpos pintados por Lucien Freud.
Uma sociedade de corpos moribundos -não é esta uma das obsessões da autista: a (eterna) decadência do corpo? Mas, se Seidl sabe ver a beleza desses corpos, por que tanto os tortura? Simplesmente para dizer que as pessoas são cruéis. Os seus "funny games", ao contrário dos de Haneke, às vezes parecem violência gratuita.
Afinal, o sadismo lúdico não é só dos personagens, mas também do cineasta, que o encena sem distância. Seidl não desenvolve seu ponto de vista crítico o suficiente para justificar toda a crueldade de sua mise-en-scène. (TIAGO MATA MACHADO)


Dias de Cão
Hundstage    
Direção: Ulrich Seidl
Produção: Áustria, 2001
Quando: hoje, às 23h05, na Sala UOL




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