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CARLOS HEITOR CONY
Versão nova da Pietà na cidade sem Deus
Em recente comentário na
CBN, espantei alguns ouvintes declarando que não havia visto o filme "Cidade de Deus" nem
pretendia vê-lo, a menos que surgisse uma imposição profissional
que me obrigasse a isso. Em Gramado, não faz muito, vi alguns
filmes que nunca teria visto por
vontade própria.
Conheço este tipo de reclamação. Os que gostam de filmes violentos acusam os que não gostam
de avestruzes, que mergulham a
cabeça na areia para fugirem da
realidade. Desejam um mundo
cor-de-rosa, com flores e bichinhos à Walt Disney cantando a
"Dança das Horas", de Ponchielli,
ou a "Valsa das Flores", de Tchaikovski.
O argumento que os cultores de
filmes assim brandem contra os
alienados que não gostam de porrada nem de tiros no cinema e na
vida real é antigo e boçal: não
adianta fechar os olhos à dura
realidade de um mundo cruel, de
uma sociedade violenta, responsável pela criação dos monstros
que nos matam, nos assaltam,
nos estupram etc. etc. Este tipo de
escapismo -negar a realidade
que nos circunda- é uma das
causas da própria violência.
Acontece que, queiramos ou
não, somos consumidores e muitas vezes vítimas dessa realidade,
não precisamos estetizá-la nem
maquiá-la de obra de arte, com
boa iluminação, boa interpretação, boa produção, enfim. Ela é
melhor -se é que a violência pode ser melhor e mais real- na vida diária que vivemos. Mais emocionante até. Não tem a pretensão moral e didática de condená-la nem de torná-la emblemática.
Ela existe realmente, produzida
sem o patrocínio de banco ou de
órgão público, não começa nem
acaba quando sentamos na sala
dos cinemas. Esta violência é que
nos devia ensinar alguma coisa e
motivar a sociedade seriamente, e
não culturalmente, muito menos
artisticamente.
Para dar o exemplo pessoal. Um
cara passou pela avenida em que
moro, sem ter nada o que fazer,
deu um tiro na porta de vidro da
portaria. Por acaso, o porteiro estava abaixado, arrumando uns
embrulhos no chão. Se estivesse
em sua posição habitual teria levado um tiro de 45.
Um colega de imprensa, demitido há tempos pelo corte de despesas (outra violência rotineira que
nos ameaça), comprou um pequeno sítio perto de Araruama,
onde tinha limoeiros e algumas
galinhas de subsistência. Foi atacado por três garotos, a pauladas.
O mais velho tinha 21 anos. Roubaram-lhe algumas galinhas e o
deixaram morto, a cabeça esfacelada pelas pauladas.
Não vi isso no cinema. Como
não vi em nenhum museu, em nenhuma casa de espetáculos, a versão século 21 da Pietà, que Michelangelo espalhou em Roma, Florença e Milão.
Não é a menina branca, branca
como o mármore de Carrara, segurando o corpo crucificado do
seu filho homem -sempre me
impressionou, na Pietà romana, a
menina-mãe segurando o corpo
do filho mais velho do que ela,
adulto e sacrificado.
Não precisei ir a Roma, Florença ou Milão para ver dor maior e
mais verdadeira. Uma de minhas
empregadas, que me atende nos
fins de semana, negra, de grande
dignidade, estava lavando a louça quando o telefone a chamou.
Era uma ligação a cobrar: o marido, aos soluços, comunicou-lhe
que haviam matado o filho único,
de 18 anos. Um amigo dele, de 16,
desentendeu-se com o rapaz por
causa de um rádio portátil, a pilha se gastara, o aparelho fora devolvido com a bateria pifada, motivo mais do que suficiente para o
tiro, para o tiro não, para os cinco
tiros que o mataram.
Eu entrei na cozinha no momento em que ela recebia a notícia. Olhou para mim, quer dizer,
desviou o rosto em minha direção, mas nada viu. Fosse eu o papa, o Dalai Lama, um tigre, um
anjo ou um demônio, ela não me
veria. Não veria nada, tentando
lá dentro compreender o que
acontecera com o filho, o que
acontecera com ela, o que estava
acontecendo neste mundo que alguns dizem ser de Deus, um Deus
que deixa a bestialidade humana
de um amigo matar o amigo por
causa da pilha gasta de um rádio
portátil.
Não houve choro nem ranger de
dentes. Era uma dor muito verdadeira para ser repartida com o desespero. Eu a amparei como pude,
custei a entender o que estava havendo, e, quando entendi, me
lembrei das Pietàs de mármore
que vi por aí, nos museus e nas
igrejas do mundo.
O coração dela batia forte dentro do peito. Não era um peito de
Carrara, compactado, mas um
peito humano, feito de carne mesmo. Carne igual à minha, igual à
de todos nós, última geração de
uma carne inicialmente feita de
barro por um Criador de Todas as
Coisas.
Encurtando a história, tão curta história apesar de tudo, que
não daria um flash de 30 segundos numa tela de cinema e TV: a
vida continuou, para ela, para o
marido, para mim, para a polícia
-que consolou os pais da vítima
dizendo que a vida é assim mesmo, está tudo perdido.
Vida que continuou a girar em
cada casa, sem necessidade de um
complicado aparelho estereofônico, última geração também, de
uma indústria feita de tapes e
chips, produzida com o patrocínio do refrigerante que faz bem e
habilitada a ganhar um prêmio
da Academia de Hollywood, numa cerimônia que o Zé Walter
descreverá como a maior festa do
século.
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