|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTO
"PARALELOS E PARADOXOS"
Obra traz diálogos de Edward Said e Barenboim
Contra o barulho, contra o silêncio, contra a loucura
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"O argumento é interessante: de todas as artes, a
menos conhecida entre pessoas
com cultura geral é a música. Em
outras palavras, um sujeito culto
[...] se interessa por literatura [...],
sabe muito de cinema, pintura,
escultura, teatro e não sabe nada
de música. Existe uma espécie de
"apartheid" envolvendo a música,
uma coisa que me parece exclusiva desta época."
Quem diz isso é o professor de
literatura e crítico cultural Edward Said (1935-2003), em conversa com o maestro e pianista
Daniel Barenboim, há três anos.
Uma apenas entre muitas passagens desse teor, a citação não só
justifica de dentro este "Paralelos
e Paradoxos", mas sinaliza o registro incomum dos diálogos: não
por acaso, a palavra que mais chama atenção é "apartheid".
Foi Ara Guzelimian, consultor
artístico do Carnegie Hall, quem
teve a idéia de gravar conversas
entre Said -um dos críticos mais
estudados ao redor do mundo-
e Barenboim, grande músico, conhecido pelo apoio a Israel, mas
também pelas polêmicas que causou, por exemplo, ao reger Wagner em Jerusalém.
O livro é um registro de quatro
desses encontros, mais dois debates públicos. Traz ainda um texto
de Barenboim, comentando sua
situação como músico judeu dirigindo uma casa de ópera na Alemanha, e outro de Said, discutindo "Barenboim e o tabu Wagner".
Não causa surpresa que o primeiro assunto seja a questão da
identidade, já que "no começo do
século 21, ninguém pode afirmar
convincentemente que tem uma
única identidade". Parece uma
frase de Said, mas é uma citação
de Barenboim, que em outro ponto vai mais longe: "Ter múltiplas
identidades é não só possível como desejável". Aqui está o ponto
de fuga do livro, para onde converge um leque de comentários.
No outro extremo, fica a questão da globalização, que tende a
homogeneizar comportamentos
até no mundo aparentemente
protegido da música de concerto.
Contra essa padronização, surgem as estratégias de reforço da
identidade local -igualmente regressivas, seja com o fundamentalismo, seja no conservadorismo
nacionalista. "Globalização ou
fascismo", como resume Said.
Nessas circunstâncias, o artista,
assim como o intelectual, se vê
largado numa corda bamba. O filósofo Adorno já preconizava que
seria preciso participar e não participar da cultura: intervir de dentro, para ter efeito, mas manter-se
fora, para cultivar alguma lucidez.
É naqueles pontos em que preocupações dessa ordem se cruzam
com a prática da música que o livro ganha singularidade. Veja-se
por exemplo a discussão de Barenboim sobre a ética da performance. A defesa da diferença ganha concretude nas lembranças
de Barenboim do maestro Furtwängler (1886-1954). Para Barenboim, à maneira desse precursor,
a música é sempre uma questão
de fluxo e refluxo; todo som tende
ao silêncio, para não dizer à morte, e a arte da interpretação visa
sustentar uma continuidade viva.
Se o livro, nalguma medida, é
frustrante, isso se deve à expectativa levantada por idéias fortes assim -em especial, dos comentários de Said. Vale o mesmo para
quem espera mais do que críticas
rápidas sobre o Acordo de Oslo e
o conflito no Oriente Médio.
Por outro lado, é mais que relevante esses diálogos terem seu foco na música. Se ela constitui, às
vezes, "o meio mais eficaz de fugir
da vida", também pode ser "a melhor escola de vida", diz Barenboim. "Num sentido profundo, a
música talvez seja a resistência final à aculturação e à mercantilização de tudo", escreve Said. As frases podem soar como inesperado
otimismo, da parte de dois homens tão realistas; mas resumem
a defesa apaixonada de um ideal
humanista, que um e outro encarna para além das diferenças.
Paralelos e Paradoxos
Autores: Edward Said e Daniel
Barenboim
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (192 págs.)
Texto Anterior: Fora da estante Próximo Texto: Revista: "Argumento" volta mais "arejada" Índice
|