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São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2003

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LITERATURA

No livro "Elizabeth Costello", que deve ser lançado em dezembro no Brasil, autor aborda fama literária

Coetzee cria espelho de suas idéias em escritora decadente

JANET MASLIN
DO "NEW YORK TIMES"

Elizabeth Costello percorre o mundo, de universidades a navios de cruzeiro, fazendo discursos e aceitando prêmios. Como celebridade literária central de "Elizabeth Costello", o novo romance de J.M. Coetzee, ela é o tipo de escritora renomada cuja condição de tesouro vivo das letras é mais teoria do que fato.
"Não é o métier dela, a argumentação", pensa o filho John. "Ele a vê como uma foca, uma foca de circo velha e cansada", escreve Coetzee. Em criança, John achava intrigante que "uma mulher que ganha a vida escrevendo livros fosse tão ruim contando histórias para fazê-lo dormir".
Da maneira que Coetzee estabelece em muitos comentários acerbos, Costello é uma celebridade literária no sentido mais anestésico do termo. Nem mesmo ela se interessa totalmente pelo que tem a dizer. Mas Costello rechaça ferozmente "os caçadores de relíquias, os colecionadores e os peregrinos sentimentais" que parecem querer pedaços dela e definem a atmosfera intelectual facciosa na qual esse livro se desenrola.
Ainda antes que Coetzee ganhasse o Prêmio Nobel de Literatura, no começo do mês passado, ele sabia uma coisinha ou outra sobre as irritações da fama.
E ele parece estar escrevendo este romance de um ponto de vista muito próximo de casa. Coetzee trata a eminência de sua personagem principal como um aspecto decisivo de sua ficção. Mas há um efeito de espelho em "Elizabeth Costello", graças à maneira pela qual esse engenhoso romance foi montado. Parte das teorias filosóficas de Costello foram escritas e publicadas individualmente como pensamentos de Coetzee.
Assim, o livro é uma série de pit stops metafísicos, apresentados de maneira inteligente, se bem que conectados apenas tenuemente. Cada capítulo é dedicado a alguma teoria de Costello, à afetuosa zombaria de Coetzee quanto à forma pela qual ela as apresenta e defende e a seguir a uma séria explicação das idéias de Costello. De direitos dos animais ao mal, Eros e humanismo, Costello teimosamente se define como escritora, desgastando os nervos alheios onde quer que vá.
Em seu primeiro trabalho de ficção desde "Desonra", Coetzee cria uma substituta formidável, até mesmo carismática, na forma de uma escritora dedicada ao seu trabalho. Mas o livro se aprofunda nas dúvidas mais graves de Costello, e culmina em um desdobramento teatral digno da afinidade do personagem com Kafka. Ela termina forçada a explicar seus princípios literários.
À luz de suas ambições difusas e rarefeitas, "Elizabeth Costello" se prova improvavelmente convidativo no nível de simples narrativa. Coetzee pontua cada episódio com um vislumbre do que existe por trás da resistente blindagem de Costello, e com suas observações cômicas e desdenhosas sobre aqueles que a cercam.
Para os propósitos de "Elizabeth Costello", a principal mensagem é a de que o escritor é livre para seguir sua imaginação onde quer que esta vá. "Se eu posso abrir caminho pelo pensamento até a existência de um ser que jamais existiu, posso abrir caminho pelo pensamento até a existência de um morcego (...) qualquer ser com quem eu compartilhe um substrato de vida".
E, sob o mesmo critério, Coetzee pode habitar os dias de decadência de uma escritora e se unir a ela no convite a reações que terminam sendo sempre polidas. "Uma palestra admirável, sra. Costello", diz um reitor de faculdade. "Muito estimulante. Aguardamos com ansiedade o que a senhora terá a nos dizer amanhã."


Tradução Paulo Migliacci


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